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Lara Nishimura

Sobre afeto, ciclos e música

Atualizado: 15 de set. de 2021

Existe uma música antiga para crianças que me faz pensar em como as coisas são cíclicas dentro de nossas famílias; em como muitas coisas – podendo estas ser meros detalhes, hábitos, trejeitos e piadas – se repetem sem que todos percebam (ou talvez ninguém perceba). Acredito que essas coisas possam ser pequenos hábitos ou até mesmo traumas, mas no meu caso, ou melhor, no caso da minha família o que nos é cíclico é a afetividade demonstrada através dessa música, ainda que a maior parte de nós não conheça o seu verdadeiro significado.


“くつがなる” (lê-se Kustu Ga Naru) me é quase que desconhecida em termos de significado de palavras, mas me é completamente familiar em termos de carinho e ancestralidade. Não sei exatamente como ou quando aprendi a cantá-la (e se sei cantá-la propriamente), mas lembro de uma noite em que eu estava triste, ou um pouco indisposta, e minha mãe se sentou ao meu lado na cama e começou a passar a mão em círculos na minha barriga enquanto falava de sua おばあつあん (lê-se obaatian – avó em japonês), chamada Ito. Minha mãe falava com carinho sobre como sua “batianzinha” era gentil e fazia carinho nela, da mesma forma, quando ela era pequena e estava triste e mentia dizendo ter dor de barriga. Em algum momento ela me contou que Ito cantava para ela essa música que entoa logo no começo palavras que falam sobre estar de mãos dadas. A música passou a ter um significado forte para mim, pois era como se eu estivesse acessando uma pequena lembrança boa que minha mãe tinha da época em que ela morava na fazenda em que seu pai cultivava soja e algodão.


Nunca entendi muito a letra da música. Sabia que em algum momento ela falava sobre passarinhos e coelhos, mas isso nunca foi o mais importante para mim. O mais importante era manter dentro de mim uma pequena parte do relacionamento da minha mãe com minha bisavó, o qual se repetia comigo. Alguns anos depois essa música se tornou ainda mais especial para mim quando eu comecei a cantá-la com minha obaatian Yooko (nora de Ito). Não me lembro como isso aconteceu, mas só sei que isso se tornou uma coisa especial para nós, pois vira e mexe a gente canta um pedacinho dessa música. Isso me faz sentir como se eu estivesse reproduzindo uma parte da história da minha família que começou com minha mãe e a avô dela e, agora, se repete comigo e minha avó quando deitamos juntas para conversar antes de irmos dormir ou quando estou triste e a Yooko me dá carinho.


Lembro que isso – cantar Kutsu Ga Naru - se tornou uma pequena alegria para ela durante a sua internação e que minhas primas acabaram tocando essa música para ela quando iam visitá-la. Acho curioso pensar que elas não sabem da importância dessa música para minha mãe, mas que reconhecem que ela existe e é conhecida por todas nós. Sinto que essa música infantil carrega um grande significado: o de evocar memórias de nossas avós que nós, netas de imigrantes japoneses, carregamos e guardamos em nossas lembranças com muito carinho e afeto.


Foto de família tirada por volta dos anos 40 no interior do estado de São Paulo (Arquivo pessoal). Observa-se Ito (sentada) com seu esposo, Soji, e seus filhos e filhas (Riuyiti, Shusako, Eiko, Genji, Shiroko e Shunko, da esquerda para a direita).

Partitura da música.


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