Há 13 anos, quando a historiadora Marcia Yumi Takeuchi escreveu o livro “O Perigo Amarelo: Imagens do mito e do preconceito (1920-1945)”, descrevendo os debates políticos sobre a permissão da entrada de imigrantes japoneses no Brasil do começo do século XIX [1], e, sobretudo, abordando as visões em relação ao imigrantes amarelos [2] na época, não se imaginava que uma pandemia assolaria o planeta, nem que esta traria de volta a ideia de um “perigo amarelo” [3]. Apesar do primeiro navio que trouxe imigrantes japoneses ter atracado no Porto de Santos há 113 anos e da tentativa de uma imigração chinesa ainda no período imperial brasileiro nos parecer distantes, parte das concepções e falas reproduzidas naquela época ainda estão presentes na realidade atual.
O Covid-19 apareceu na China no final de 2019 e se espalhou pelos continentes em 2020, contaminando todos os países por onde passou, principalmente os da Europa. Mesmo que o primeiro diagnóstico do coronavírus no Brasil tenha sido detectado em uma pessoa branca que havia viajado à Europa, a resposta de muitos brasileiros à situação, entre diversas outras atitudes, foi trazer à tona a ideia do perigo amarelo. Atacando, assim, a população de leste-asiáticos e seus descendentes residentes no país. As primeiras notícias sobre ataques verbais contra amarelos vão desde o caso da estudante de Direito da UFRJ, Marie Okabayashi, que foi alvo de agressões verbais no metrô do Rio de Janeiro, até a proibição da utilização do elevador social por funcionários chineses em um prédio comercial da Zona Sul da cidade de São Paulo, e não tardaram a surgir. A população amarela, que antes era reconhecida como uma minoria modelo [4] aos olhos da sociedade, passou a ser entendida como virulenta. A ideia do perigo amarelo voltou, mas sob outra perspectiva: a noção de que ele, agora, pode contaminar a sua família.
Enquanto no final do século XVIII e no começo do XIX debatia-se sobre a entrada de uma quarta raça no Brasil, a de amarelos, em 2020, essa quarta raça passou a ser entendida como um vírus. O movimento da comunidade leste asiática nos Estados Unidos, por exemplo, lançou a campanha “I am not a virus” (em tradução literal “eu não sou um vírus”), em resposta às agressões físicas contra idosos e a população imigrante e descendente que reside no país. No Brasil, a população amarela denunciou diversos casos de agressões verbais e situações constrangedoras, chegando a aderir ao movimento iniciado nos Estados Unidos. Dessa forma, a comunidade da diáspora asiática nas Américas começou a se movimentar, chamando a atenção para como o Covid-19 vem sendo entendido como um vírus chinês, ou seja, como um vírus racializado, que carrega consigo estigmas e preconceitos.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial e o passar das décadas do século XX, o mito da minoria modelo substituiu a ideia do perigo amarelo. A noção que via os amarelos como inimigos da nação brasileira durante a guerra ou que eram uma raça que atrapalharia o seu embranquecimento mudou. Esse mito foi, agora, substituído pelo entendimento de que essa população é dedicada, quieta, submissa, inteligente, ou seja, um modelo a ser seguido. A cultura dos animes, mangás e do k-pop entrou em evidência e faz parte do cotidiano de muitos brasileiros, sobretudo dos jovens. Afinal, quem nunca ouviu falar de Pokémon e BTS? Quem nunca foi a um restaurante chinês para comer yakissoba ou na barraca de pastel de uma família japonesa?
O coronavírus impactou não só o entendimento da população asiática amarela no Brasil, mas também as vendas de famílias amarelas donas de restaurantes e estabelecimentos comerciais, uma vez que muitas pessoas deixaram de frequentar esses lugares por medo do vírus. A população leste-asiática no Brasil não foi a responsável pela chegada do vírus no país, muito menos pela sua disseminação. Na verdade, o único responsável pelos números alarmantemente atmosféricos a que o vírus chegou foi o governo e parte da população que desrespeitou as medidas preventivas. A negligência da situação pandêmica foi a responsável pelos rumos que a doença tomou no Brasil. O fato do Covid-19 ter tido os primeiros casos no território chinês não significa que o vírus é, de fato, chinês. Este vírus evidenciou, duramente, que ainda há no imaginário brasileiro a ideia do perigo amarelo e que essa população nunca deixou de ser entendida como uma possível ameaça para o restante do país.
[1] A imigração japonesa para o Brasil aconteceu por dois motivos: 1. A Reforma Meiji que estava acontecendo no Japão e que previa a modernização do país. O governo japonês estava incentivando a imigração de sua população, principalmente de camponeses, para que pudesse consolidar o seu projeto de modernização. 2. A abertura do Brasil para a entrada de imigrantes - que vinha acontecendo desde o período Imperial - para a substituição da mão de obra escrava e, também, para a consolidação da ideia de Brasil que as elites tinham para o país.
[2] Termo utilizado no Brasil para falar de pessoas do leste asiático, como no caso dos japoneses.
[3] A ideia do perigo amarelo tem origem no passado da população asiática amarela (população da região do leste da Ásia, região da China, Taiwan, Mongólia, Japão e Coreias). O conceito se origina do medo ocidental em relação a uma possível dominação imperialista dos países asiáticos, que supostamente se infiltraram no ocidente e o dominariam.
[4] O mito da minoria modelo fundamenta-se na ideia de que um grupo social, como os imigrantes japoneses, prosperou e se tornou um exemplo a ser seguido pelos demais grupos. É uma concepção problemática por colaborar com a anti-negritude e com a repressão de outros grupos por colocar a ideia de que uma minoria racializada conseguiu ascender e adquirir privilégios e, portanto, deve ser seguida. Um exemplo que podemos pontuar é o discurso de Jair Bolsonaro no Clube Hebraica, no qual o então deputado utilizou o mito da minoria modelo para criticar outras minorias racializadas e pessoas marginalizadas ao dizer que “Alguém já viu um japonês pedindo esmola por aí? Porque é uma raça que tem vergonha na cara”. Em outras palavras, o ex-deputado pontuou que quem está na rua pedindo esmola deveria seguir o exemplo dos japoneses e ter “vergonha na cara”. Indico o seguinte artigo para mais informações sobre este ponto: https://outracoluna.wordpress.com/2016/06/13/a-participacao-asiatica-no-racismo-anti-negro/
[5] Vide TAKEUCHI, Marcia Yumi. O Perigo Amarelo - Imagens do mito, realidade do preconceito (1920-1945). São Paulo: Humanitas, 2008.
[6] Matéria da BBC sobre o caso https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51379835 [4] Vide LESSER, Jeffrey, A invenção da brasilidade: identidade nacional, etnicidade epolíticas de imigração.Ed. Unesp: São Paulo, 2015 e O Perigo Amarelo - imagens do mito, realidade do preconceito (1920-1945)
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