Em meu último artigo (Livros e resistência: a coragem do livreiro de Cabul), publicado na 25ª edição, abordei como os livros serviram de instrumento de resistência para Sultan Khan, livreiro opositor dos regimes autoritários que marcaram a recente história político-cultural do Afeganistão. Continuando com essa abordagem, dessa vez trago o teatro e a música como meios de enfrentar as atrocidades perpetradas na Coreia na primeira metade do século passado.
Quando se fala em neocolonialismo, é comum pensarmos nas barbáries cometidas pelas potências ocidentais, sobretudo a Inglaterra e a França, contra povos africanos e asiáticos. Porém, esse contexto atroz também sucedeu entre o Japão e as atuais Coreias, então unificadas e conhecidas como Joseon.
Em meados do século XIX, aquelas mesmas potências pressionaram a China, o Japão e Joseon a abrirem suas portas para relações diplomáticas e comerciais, porém os coreanos recusaram as solicitações. Posteriormente, em 1875, o Japão, com intenções imperialistas, após um combate sangrento na ilha coreana de Ganghwa e, sob ameaça militar, forçou Joseon a abrir seus portos para os japoneses.
Ocorre que, a partir de então, as pretensões imperialistas passaram a se intensificar. Diante das tentativas recorrentes do Ocidente e do Japão de invadirem seu território, Joseon iniciou o processo de abertura, que, no entanto, não suprimiu as forças ocidentais e japonesas. E, em 1910, o Império Japonês finalmente anexou o Império Coreano e instituiu o domínio colonial.
É nesse ambiente conturbado que se passa a real história de amor entre a primeira soprano[1] da Coreia, Yun Sim-Deok, e o escritor Kim Woo-Jin, retratada no dorama “Louvor à Morte” (2019), disponível na Netflix em três episódios.
O drama, ambientado em meados de 1920, retrata a crueldade sofrida naquele regime, no qual inúmeras censuras foram aplicadas. Os coreanos foram proibidos de criticar os japoneses e exaltar sua cultura e língua. Na realidade, passou-se a instituir uma forma de opressão para que os coreanos incorporassem os valores e as tradições japonesas.
A fim de manter viva a cultura de seu país, Kim Woo-Jin, estudante de literatura na Universidade de Waseda, escrevia peças pró-Joseon interpretadas em sua língua nativa. Yun Sim-Deok, estudante na Academia de Música de Ueno, foi, então, convidada para cantar nas apresentações a serem realizadas em várias cidades coreanas.
Entretanto, durante um dos ensaios em um estúdio de Tóquio, o grupo acabou sendo drasticamente interrompido por oficiais japoneses, que vasculharam o espaço em que se encontravam e inquiriram o estudante a respeito do conteúdo dos encontros e do porquê do uso da língua coreana, a qual era estritamente proibida, de acordo com a Lei de Ordem Pública e Polícia[2]. Apesar da pressão a que estavam submetidos e do potencial perigo de responderem por sua ousadia, os jovens não cederam e resolveram manter as peças para que pudessem ser exibidas em uma turnê em várias cidades de Joseon.
Ainda assim, em uma das cenas iniciais, a minissérie traz um diálogo emblemático entre Kim e Yum, por meio do qual a jovem cantora revelou não entender a razão das peças, pois o país já estaria perdido. Ela, então, indaga: “De que adiantariam peças de teatro e músicas ocidentais? Elas não têm nenhum poder.” A hesitação, porém, não abala as convicções do escritor, para quem as apresentações consagraram as artes de Joseon, representando um motivo de orgulho dos coreanos e de luta pela sobrevivência das tradições do país.
“(...) estou tentando me agarrar ao meu país do meu próprio jeito. Nosso país está sendo pisoteado, mas quero mostrar que nossos espíritos ainda vivem na forma de uma peça. Essa também não é a razão de você cantar?” (NETFLIX, 2019, 1º episódio).
Posteriormente, o grupo parte para Joseon para as apresentações, onde Yum é consagrada como a primeira soprano do país, em vista de seu notório talento e sua admirável voz, ainda que as ameaças japonesas estivessem em voga.
Em uma Coreia assolada por invasões, atravessada por várias crises e diminuída à condição de colônia japonesa, a valorização da cultura, das artes e da língua é um ato de rebeldia, de coragem daqueles que não deixam a identidade ser apagada em detrimento do poder. A apresentação de peças teatrais e de cantos representou a exaltação de um povo, o orgulho de pertencer àquele lugar.
Kim Woo-Jin e Yun Sim-Deok mostraram aos demais coreanos que a esperança, ainda que timidamente, vivia. As atrocidades praticadas pelo Japão mantiveram a colonização por mais de três décadas, mas não foram capazes de eliminar a identidade, as convicções e o desejo por liberdade dos coreanos.
[1] Soprano é uma cantora com a voz mais aguda no canto lírico.
[2] A Lei da Ordem Pública e Polícia reduzia expressivamente a liberdade de expressão e os direitos dos coreanos de manterem suas tradições.
Referências bibliográficas
Louvor à Morte. Netflix. 2019.
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