Para compreender a necessidade dos processos de despatologização[1] das identidades não cisheteronormativas[2] é necessário retomar a compreensão hegemônica que o campo da psiquiatria possuiu a respeito delas nas últimas décadas. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) são utilizados para classificação dos transtornos psiquiátricos e orientam, de forma geral, políticas públicas e práticas profissionais na área da saúde mental, já que a partir dele se estabelecem os diagnósticos psiquiátricos - como depressão, ansiedade e esquizofrenia. Esses manuais apresentaram diversas versões, nas quais sexualidades e identidades de gênero apareciam como patologias[3]. A classificação de sexualidades e modos de existência como doenças reforça e categoriza como anormais quaisquer manifestações não cisgêneras e heterossexuais pelos sujeitos - os marginalizando ainda mais - e possui importantes implicações políticas e práticas.
Ao ser classificada como doença, uma característica ou experiência subjetiva pode ser alvo de práticas que tem como objetivo curar aqueles que a apresentam, ou seja, anular a subjetividade[4] do sujeito. Desse modo, é possível observar de que forma a presença de identidades LGBTQIA+ em manuais diagnósticos fundamentou práticas como as terapias de conversão - muito comuns por volta de 1980 no Brasil (Garcia & Mattos, 2019) - utilizadas em atendimentos psicoterápicos e extremamente violentas para essa comunidade.
Além disso, a patologização das identidades de gênero e sexualidades é decorrente, entre outros fatores, da lógica manicomial[5] e patologização da vida, que se apresentam como ferramentas de controle dentro do sistema capitalista, por meio uma ideologia normativa, que transforma especificidades em desvios (CECCARELLI, 2010), colaborando com uma dinâmica de isolamento numa tentativa de negar as contradições decorrentes da sociedade (BASAGLIA,1985)
Assim, o processo de despatologização das sexualidades teve início no final da década de 1980 pelas organizações e conselhos de profissão brasileiros, quando o Conselho Federal de Medicina retirou a homossexualidade das listas de doenças mentais, porém, somente em 1993, na décima versão do CID, a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de considerá-la como patologia. No campo psicológico, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou uma resolução em 1999 orientando a prática clínica da categoria, na qual se estabelece que: “Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas[6], nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”.
A respeito das identidades de gênero, o processo é ainda mais tardio e não totalmente consolidado. A transsexualidade foi primeiramente categorizada como transtorno de identidade na terceira versão do DSM e apareceu como “transsexualismo” na CID-10, configurando-o como um transtorno mental. Atualmente, a décima primeira versão da CID não considera transsexualidade uma doença, decisão oficializada somente em 2019 pela OMS. O CFP, por sua vez, já havia publicado a resolução 01/2018 que orienta os profissionais de psicologia a não considerarem transexualidade e travestilidade doenças, assim como a não desenvolver práticas terapêuticas de forma discriminatória. Somente após 28 anos de luta e mobilizações do movimento LGBTQIA+ as identidades deixam de ser patologizadas, uma conquista recente, mas que não garante que essas pessoas não sejam alvos de violências nos atendimentos à saúde.
Apesar de as resoluções publicadas pelo CFP serem fundamentais para a garantia de direitos, e o código de ética do psicólogo estabelecer que é vedado praticar atos discriminatórios e LGBTQIA+fóbicos, estes ainda são presentes no meio da psicologia, a exemplo da existência de movimentos de psicólogos reacionários que se associam a grupos conservadores - e as resoluções, que garantem os direitos dessa população, sofrem com tentativas de retrocessos (Garcia & Mattos, 2019). Os efeitos da patologização de diversas sexualidades ainda podem ser observados, já que a resolução sobre atividades de conversão de sexualidade - popularmente conhecidas como “cura gay” - não foi suficiente para que eles cessassem completamente, principalmente em meios religiosos, sob a justificativa de que ser LGBTQIA+ é fonte de sofrimento. Quando, na verdade, a origem de tal sofrimento são as imposições dos padrões sociais de cisheteronormatividade e violências sofridas em decorrência do distanciamento deles.
Desse modo, os saberes psicológicos e atuação dos profissionais de psicologia são fundamentais para o combate à LGBTQIA+fobia, pois são utilizados como referência e possuem impactos diretos nas relações cotidianas. Ainda assim, são reflexos da sociedade, e a psicologia hegemônica[7] é influenciada por uma lógica manicomial e patologizante (CANONNE, 2019). Por isso, faz-se necessário construir práticas que não se limitem à atuação clínica, questionando os próprios saberes e estabelecendo um compromisso social e emancipatório conjuntamente ao movimento LGBTQIA+.
[1] Despatologização Segundo o dicionário Aurélio: patologia é sinônimo de doença, logo, patologização é a ação de qualificar algo como doença, e seguindo a lógica contrária, despatologização seria a ação de retirar -de algo- a qualidade de doença.
[2] O termo cisheteronormatividadefoi criado em 1997 por Cathy J. Cohen, definindo a normatividade como pertencente a um “sistema hétero".
[3] Segundo o dicionário Aurélio, patologia é sinônimo de doença
[4] Segundo o dicionário Aurélio, subjetividade é a qualidade de subjetivo, individual, particular; relativo ou próprio do indivíduo.
[5] O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo entende que: “A lógica manicomial não é uma realidade apenas de hospitais psiquiátricos. Está presente em instituições como a prisional e as Febens, que têm como princípio a exclusão do sujeito, a opressão e a violência”.
[6] Homoerotismo de acordo com Jurandir Freire Costa explorado por Barcellos, em seu livro “Literatura e homoerotismo em questão”: “Trata-se, pois, de um conceito capaz de abarcar tanto a pederastia grega quanto as identidades gays contemporâneas, ou ainda tanto relações fortemente sublimadas quanto aquelas baseadas na conjugalidade ou na prostituição, por exemplo”. (COSTA, 1992, 21 ss. e BARCELLOS, 2006, p. 20)
[7] Hegemônica, segundo o dicionário Aurélio, é aquela que está em posição de hegemonia, isto é, supremacia, domínio, poder que algo ou alguém exerce em relação aos demais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BASAGLIA, Franco. As instituições da violência. A instituição negada. 2ª edição. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
CANNONE, Lara Araújo Roseira. Historicizando a Transexualidade em Direção a uma Psicologia Comprometida. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 39, n. spe3, e228487, 2019 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932019000700300&lng=en&nrm=iso>. access on 20 May 2021. Epub May 08, 2020. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228487.
CECCARELLI, Paulo Roberto. A patologização da normalidade. Estud. psicanal., Belo Horizonte , n. 33, p. 125-136, jul. 2010 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.phpscript=sci_arttext&pid=S010034372010000100013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 20 maio 2021.
GARCIA, Marcos Roberto Vieira; MATTOS, Amana Rocha. “Terapias de Conversão”: Histórico da (Des)Patologização das Homossexualidades e Embates Jurídicos Contemporâneos. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 39, n. spe3, e228550, 2019 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.phpscript=sci_arttext&pid=S141498932019000700310&lng=en&nrm=iso>. access on 20 May 2021. Epub May 08, 2020. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228550.
Resolução CFP Nº 1, de 22 de março de 1999. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf
Resolução Nº 1, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf
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