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Laura Lopes

Um relato sobre as relações no EJA: para além do aprendizado tradicional

Para quem não conhece, cidadãos que abandonaram os estudos em algum momento da vida, seja qual for o motivo, podem retomar ao ensino fundamental e médio com o EJA (Educação de Jovens e Adultos), para buscar melhores oportunidades que exigem um diploma. Apesar de suas irregularidades, falhas e descaso do Estado com o currículo e organização desta modalidade, o EJA representa a tentativa de democratização da rede pública no Brasil.


Neste espaço, deixarei muito mais do que registros do conteúdo curricular que venho acompanhando de duas turmas do EJA – as experiências que acumulei desde o primeiro dia em uma escola municipal, localizada no bairro Guará, em Campinas (SP), que sem dúvidas representam o maior fator de formação como educadora que vivenciei durante este período. Cultivo há tempos a curiosidade de integrar uma dinâmica de trocas com pessoas mais velhas de maneira inversa ao que sempre vivi na escola e em relações familiares. Então, não pensei duas vezes antes de buscar pela oportunidade de participar da educação de jovens e adultos. Logo, solicitei um estágio, com o objetivo de acompanhar ativamente as aulas e auxiliar o professor e os alunos com as atividades, mas acabei me envolvendo com todos ali para além da exposição do conteúdo.


A escola apresenta sinais claros de que os adultos não são o público-alvo: são várias as impressões digitais de mãozinhas infantis enfeitando painéis de regras de convivência ou ilustrando abecedários coloridos, nas áreas comuns estão dispostos jogos de pebolim e, no refeitório, é nítida a altura reduzida das mesas, feitas para o alcance de pessoas pequenas. Entretanto, a cada período que passo ali, percebo que os adultos que a frequentam ocupam cada vez mais aquele espaço, seja nas interações nos corredores, na ritualização da merenda com a disposição específica dos grupos em cada mesa (os senhores mais quietos em uma, as senhoras conversadeiras em outra, uma terceira com os homens que se comportam como – o que eu conheço por – a “turma do fundão”) e na rotina dentro da sala de aula, com a partilha de histórias ou alívios cômicos.


Nova Escola
Senhora estudante

Eu acompanho duas turmas com cerca de dez alunos cada, com a disciplina de história, em razão da lamentável ausência de sociologia no currículo do EJA. Ao menos durante esse período, notei que uma é bem participativa e a outra introspectiva. Semana passada concluí que talvez seja porque a segunda turma tem maior interesse nas matérias de exatas – talvez pela praticidade dos números, mais familiar ao seuscotidiano, em relação aos dilemas sociais que constroem a história do Brasil apresentados pelo professor.


Como os graus das duas turmas são diferentes, o conteúdo ministrado não tem sido o mesmo: a primeira está na época do Brasil Colonial e a segunda já chegou ao Golpe Militar de 64. O professor leciona na maior parte do tempo de maneira expositiva[1], e vez ou outra tenta interagir com os alunos através de músicas e conteúdos audiovisuais que dialoguem com o assunto da aula. Na primeira turma, acompanhei desde a chegada dos portugueses ao Brasil, passando pelas capitanias hereditárias, a catequização dos nativos indígenas e, após um salto temporal considerável, atingiram o ponto histórico que apreende a era da escravização de pessoas negras.


Foram abordadas pelo professor algumas questões como as identidades indígenas e histórias de revoltas dos escravizados, ato interessante de aprofundar sobre quem eram os indivíduos envolvidos nesses eventos. Porém, na minha concepção, algumas de suas táticas de ensino não geram o impacto que ele gostaria com os estudantes. Ao percorrer sobre o período que compreende desde a Era Vargas até o final da Ditadura Militar brasileira, o docente se entusiasmou com as tentativas de passar músicas de Gonzaguinha ou Elis Regina, mas chamou a atenção de poucos deles, provavelmente por não despertar o sentimento de identificação nos demais.


A identificação, por sua vez, é um elemento que me pareceu crucial para lidar com o ensino de adultos, que em sua maioria carregam uma bagagem que comporta praticamente meio século de vivência. Ao contrário das crianças, que adquirem boa parte de suas primeiras aprendizagens no ambiente escolar, os alunos do EJA já conhecem o mundo através da prática e, por isso, têm bastante consciência de seus próprios limites e identidades. Assim, se evidencia o principal desafio: como promover um ensino horizontal e transformador em “pessoas já feitas”, visto que eu sou alguém com décadas a menos de existência e um menor conhecimento da vida? É o que me questiono toda vez que piso na sala de aula.


Parte desse entrave surgiu quando notei o professor, despreocupado, querendo dialogar sobre os aspectos políticos da Era Vargas com os estudantes, como quem conversa de igual para igual com outro colega da mesma área, formado em história. Aquela conversa não foi para lugar nenhum – não porque falta inteligência aos alunos, mas pela falta de esforço do educador em apresentar o conteúdo de maneira adequada a indivíduos que nunca tiveram contato com livros extensos que esmiúçam a burocracia daquele contexto político por meio de termos complexos e acadêmicos.


Não adianta esperar assimilação e reflexão de estudantes que, em alguns casos, se encontram no processo de alfabetização, utilizando palavras como “constitucionalista” ou siglas que designam partidos. Somado a isso, o pedagogo possui como metodologia a absorção de conteúdo através de folhas cheias de perguntas longas a respeito de textos maiores ainda, em que os alunos devem responder de forma dissertativa. O que observei foi a extrema dificuldade em realizar a leitura e responder de forma autônoma, sem a cópia de trechos. Embora eu compreenda a vastidão de um conteúdo que precisa ser dado em pouco tempo, sinto que a eficácia verdadeira se encontra na adaptação, respeitando o desenvolvimento potencial dos educandos. Então, encontrei meu papel como estagiária: sempre que tenho oportunidade, me aproximo para ajudar na digestão da matéria de maneira mais palpável, lembrando sempre que é essencial respeitar seus limites e questionar sem vergonha.


Sala de aula

Outro aspecto que me chamou atenção é a importância de proporcionar aos estudantes do EJA experiências escolares para além das disciplinas. Momentos coletivos de descontração e celebração são muito encorajados pelos professores e pelos próprios alunos da escola. Sempre que alguém faz aniversário, eles se organizam para levar quitutes e fazem questão de cantar parabéns. A escola também realizou duas excursões, das quais eu infelizmente não pude participar, para a exposição imersiva do Van Gogh e a Academia Campineira de Letras. Apesar de não ter presenciado, os comentários que ouvi a respeito desses eventos foram muito positivos.


São experiências enriquecedoras, que dizem muito sobre a vida escolar, um cenário de coletividade que foge da seriedade das relações de trabalho e do costume das familiares. Todos foram aos passeios, exceto dois estudantes, senhores de mais de 60 anos e motoristas das vans que, partindo de um acordo comum entre as turmas (inteiramente residentes do bairro do Guará), realizaram o transporte de todos na ida e volta da escola. Os dois passaram o tempo da excursão sentados em banquinhos posicionados próximos ao portão, fumando e conversando com o vigia noturno da escola, um senhor muito simpático que já me contou sobre o movimento nos arredores da escola durante as madrugadas e diz estar bem acostumado com os horários malucos de serviço, que dura até o amanhecer.


Minhas críticas aos métodos de ensino que pude observar durante o estágio não se direcionam a um só profissional da educação, mas sim ao sistema como um todo, que não compreende o tempo nem dispõe de meios que possibilitem o aprendizado e se atente às particularidades de cada educando. Embora tenha pontuado estratégias que eu não pretendo reproduzir como professora, existem feitos que presenciei em sala que com certeza irei herdar de meu professor supervisor: mesmo em meio ao entrave que é ensinar de maneira humanizada o conteúdo de um currículo compactado e sem muitas brechas para flexibilização, é notável o esforço dos educadores da escola de envolver os estudantes em contextos históricos que não abrangem somente o Brasil como um todo, mas que mostram a trajetória do contexto do local em que a maioria deles cresceu, a própria região de Barão Geraldo, que inclui o bairro Guará.


Em contradição com o distanciamento do sentimento de identificação com o conteúdo bruto, as aulas de história abordam, com frequência, a origem de eventos culturais, projetos ferroviários que nunca se concretizaram e figuras importantes da região barão geraldense. Isso acarreta maior interação e desperta a vontade de tecer comentários e contar casos nos estudantes. Logo no primeiro dia, quando cheguei, eles estavam pintando painéis para a “Festa do Boi Falô”, evento que descobri ser típico de Barão Geraldo na Sexta-feira Santa, e diz respeito à uma lenda folclórica de um boi que conversou com um homem escravizado na região, dizendo que em dia santo não se deve trabalhar.


Alguns já conheciam a história e frequentam a festa, outros tiveram contato com a origem da celebração através do ato coletivo de elaborar os painéis. Depois, foi discutida a figura histórica do Barão Geraldo, que deu nome à província, onde pretendia construir uma ferrovia que ligasse a região à cidade de Paulínia. Dito isso, penso que lecionar, assim como a maioria das coisas da vida, inevitavelmente recai sobre a contradição e cabe a cada educador se movimentar e utilizar seus instrumentos de ensino como pode, para lidar com as limitações de um projeto subestimado como o EJA. Ouvi mais de uma vez os estudantes dizendo frases como “achava que estava muito velha para voltar a estudar, o que ainda tenho a aprender?”. Acaba que, na escola eles vivenciam momentos tão valiosos quanto o aprendizado em si, que ultrapassam as celebrações e diálogos, mas se encontram na experiência de cada um em sentar, aprender e perceber que é possível e assim, enxergar que é permitido sonhar em ingressar em uma faculdade aos 50, obter um diploma, levar a vida para outros caminhos.


Portanto, o exercício de promover um ensino que toque os alunos é um exercício constante (e nada fácil) do educador. É preciso adentrar a história de cada estudante, compreender pontos fortes e fracos de cada um, ser paciente e resiliente, adaptando sempre que possível o conteúdo.

Por fim, exercer o papel de formador de cidadania com o empenho em estimular nos estudantes o pertencimento, a noção de seus próprios direitos, o reconhecimento de sua existência como indivíduos ativos socialmente, e trabalhar em cima do potencial de desenvolver habilidades.


Tudo isso é árduo para todos os componentes do processo educativo, tanto professores quanto estudantes e demais profissionais envolvidos neste contexto, porém, é um trabalho coletivo e é constituído de trocas, conscientes ou não, que exercem o papel fertilizante, fundamental em tempos de instabilidade e predominância de tudo que é contrário aos valores da educação.


[1] As aulas expositivas são dadas de maneira unidirecional, ou seja, o professor fala e os estudantes escutam, muitas vezes sem abertura para compartilhar seus conhecimentos prévios, debater ou auxiliar na construção do raciocínio.


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