A História é escrita pelos vencedores.
Essa frase pode parecer óbvia para alguns. E surpreendente para outros, que não dedicam sua energia a refletir sobre o tema - diferente de mim, estudante de História. Independentemente de como ela ressoa em cada ouvido, pode ser explorada em diversos níveis e serve para que pensemos o mundo que nos rodeia, desnaturalizando-o.
Uma das cartas de Hernán Cortes ao Imperador Carlos V, em sua chegada às Américas
O que ela quer dizer, em sua essência? Ora, se a História é escrita a partir dos vestígios deixados pelo passado - documentos oficiais ou registros escritos, e também resquícios materiais: monumentos, ruínas, estátuas, obras de arte, narrativas orais… - só poderemos escrevê-la a partir dos vestígios que sobreviveram ao tempo.
Aí, pergunto: em uma disputa genérica, quem, ao final, detém mais poder? Obviamente, o vencedor sempre sai em vantagem. A exemplo de uma invasão urbana: as propriedades dos invadidos ficam à mercê dos invasores. O que acontece, na realidade, é a tomada da cultura vencida pela vencedora. Seus espaços, memórias, monumentos, são ocupados pelo conquistador, que os elimina ou os toma como seus. Tomados talvez como troféu de guerra, talvez incorporando-os em sua própria cultura. O apagamento, por sua vez, parece ser o fenômeno mais recorrente.
Milan Kundera, em seu famoso romance “A insustentável leveza do ser”, narra como os nomes das ruas de uma cidadezinha próxima a Praga foram substituídos por nomes ligados à União Soviética após a invasão da antiga Tchecoslováquia:
“Dantes, aquilo era o Grande Hotel e agora, conforme indicava o letreiro, era o Hotel Baikal. Olharam para a placa da esquina: aquela era a Praça de Moscovo. Em seguida [...] percorreram todas as ruas que conheciam para saber como é que se chamavam agora: havia a Rua de Estalinegrado, a Rua de Leninegrado, a Rua de Rostov, a Rua de Novosibirsk, a Rua de Kiev, a Rua de Odessa, e havia a casa de repouso Piotr Tchaïkovski, a casa de repouso Tolstoi, a casa de repouso Rimski-Korsakov, havia o Hotel Suvarov, o Cinema Gorki e o Café Puchkine. Eram só nomes russos ou alusivos à história da Rússia”.
Os personagens conhecem as ruas por onde andam, mas seus nomes aludem a uma história alheia à de seu país, e consequentemente alheia a eles. Esse é um exemplo claro de como detalhes simples do cotidiano são parte da história de um território e demonstram, de alguma forma, quem foram os escolhidos para perdurar até o futuro, ainda que em placas nas esquinas. E, se são depositárias de memória, podem ser substituídas quando uma nova narrativa quer se impor.
A narrativa dos fatos, desse modo, também fica nas mãos dos vencedores. Por muito tempo, pouco interessou a reação dos Astecas à chegada de Hernán Cortés ao México; o que importava mesmo era sua carta ao rei da Espanha, detalhando seu deslumbramento pela capital Tenochtitlán. O mesmo ocorreu com a História sobre o “descobrimento” do Brasil - palavra essa que diagnostica qual versão prevaleceu. O outro lado, dos que estamos chamando aqui de vencidos, não deixou nenhum registro valorizado pela historiografia [1] tradicional: as principais pirâmides do centro do México foram soterradas por Igrejas católicas e os povos indígenas do Brasil, para além de seu extermínio físico, não tinham como cultura a produção de registros duráveis.
A escolha dos heróis nacionais brasileiros é um diagnóstico escancarado dessa história arbitrária, manifesto nas tantas estátuas de portugueses conquistadores e bandeirantes, paralelo a uma ausência de personagens históricos indígenas nos livros didáticos.
Estátua do bandeirante Borba Gato, central nos debates sobre patrimônio cultural
Dessa forma, a vitória, contada pelo vencedor, é colocada como um fato óbvio, o resultado garantido de um caminho traçado por ele. Venceu porque estava preparado. Porque era melhor. Seja física ou intelectualmente. Ou superior pela sua religião, moral e costumes. O vencido foi incapaz. Nessa lógica não há desencadeamento arbitrário das partes envolvidas nas tensões sociais. Esvazia-se o passado, entendo-o apenas como uma sucessão de fatos lógicos, como se só pudesse ter sido assim.
O discurso que se fixa é: o vencedor venceu porque tinha de vencer; o vencido perdeu porque tinha que perder. Se deslocamos para a estrutura da sociedade: o subordinado está destinado a ser subordinado. Tira-se toda a agência desses sujeitos que, de alguma forma, lutaram como os vencedores, mas que por certas circunstâncias - talvez de curto prazo, como a escolha de um general na guerra, talvez de longo prazo, como as estruturas racistas - segue subjugado.
Esse entendimento impacta, afinal, nossa percepção do que sabemos sobre o passado: se a História conhecida é a contada pelo vencedor, quer dizer que encobre outra, a do vencido. Nesse sentido, segundo Walter Benjamin, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1985, p. 225), ou seja, todo registro do passado esconde o modo pelo qual se construiu - a barbárie da incorporação do bem cultural do vencido, tomado pelo vencedor.
Em uma contraposição a uma historiografia tradicional, Benjamin aponta que a função do historiador é “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1985, p.225), que significa considerar a dupla dimensão (cultura e barbárie) de cada registro investigado. Os registros sobreviveram porque outros foram destruídos. A derrota e a vitória, assim, são parte de uma circunstância histórica e não um curso natural da história humana. O passado, por sua vez, serve para redimir esses sujeitos dominados - ainda que mortos - e libertá-los do perigo de serem mortos outra vez - através do esquecimento.
Ao invés de olhar a história como uma sucessão de fatos logicamente desencadeados, busquemos olhá-la em sua complexidade, ambiguidade e profundidade. O passado nem sempre foi passado, ele sempre será uma sucessão de “agoras”, nos quais os sujeitos se apresentavam enquanto agentes históricos, seja qual for o título que lhe coube, afinal: o de vencedor ou de vencido.
[1] historiografia: a ciência que estuda a História
Referência bibliográfica:
BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Ed. Brasiliense, 1985
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