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Esther Martins de Carvalho Oliveira

A polícia como máquina de guerra

Atualizado: 3 de out. de 2021


À exemplo de Thiago Amparo, em Utopia para meninos negros[1], relembro Felipe, um menino querido que, em meio a tardes na piscina, lanches, cambalhotas e partidas de futebol, como qualquer outro jovem de sua idade, possuía sonhos e esperanças. Felipe, como eu bem o conhecia, tinha toda sua individualidade e potencialidades, mas aos treze anos de idade foi brutalmente assassinado na garagem de sua casa por dois disparos de arma de fogo. Assim como tantos jovens que tiveram suas vidas roubadas pela brutal violência praticada pelo próprio Estado, Felipe tornou-se parte de um índice massificado de jovens negros assassinados nas periferias do Brasil à fora. Esse expressivo índice retrata a guerra que marca a vida da população preta e pobre no nosso país.


O cenário nas periferias dos centros urbanos delineia um conflito evidente: o Brasil apresenta-se como um dos países mais violentos do mundo, no qual a morte é uma presença certa, sobretudo, nas comunidades mais vulneráveis. As operações policiais nos diversos estados brasileiros, sob o falso pretexto de combate à criminalidade, tornaram-se cada vez mais comuns, consolidando a alarmante taxa de letalidade policial que leva aos inúmeros assassinatos de jovens pretos periféricos. Somente no primeiro semestre de 2020, durante a pandemia, a polícia matou em serviço um total de 435 pessoas, sendo que 64% das vítimas eram homens negros[2]. Essas operações, em muitas circunstâncias, configuram verdadeiras chacinas – como a operação realizada esse ano em Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que resultou em 28 mortes –, demonstrando que as “balas perdidas” sempre encontram os corpos pretos, aniquilando pessoas inocentes.


Nestes termos, pontua-se que a polícia brasileira, principalmente a polícia militar, figura como a força de segurança mais letal entre os países do continente americano[3]. Este dado evidencia a disparidade entre os ideais do estado democrático de direito e a realidade enfrentada pelos pobres mediante a institucionalização e a naturalização da violência policial. Em flagrante violação de direitos humanos fundamentais, o Estado prioriza a proteção de certos corpos e de suas propriedades em detrimento da destruição de outros.


Nitidamente, a atuação policial é pautada por preconceitos e discriminações históricas e estruturais latentes em nosso país, o que nos leva a constatar a vulnerabilidade da população pobre e preta diante de uma sociedade, fortemente marcada pelo racismo. É nestes termos que emerge o conceito de necropolítica[4], cuja ideia consiste na existência de um poder que dita quem pode viver e quem deve morrer, apontando os indivíduos “matáveis”. Neste cenário, o exercício da morte nas periferias passa a ser mediado pela construção de um estereótipo de indivíduo que pertence a um mundo distinto daquele associado ao sujeito bom e civilizado.


O jovem negro periférico é colocado, portanto, como uma ameaça à sociedade ao ser tido, naturalmente, como um bandido perigoso, fato que justifica seu extermínio. Diante disso, compreende-se que o governo, sob perspectiva do conceito de necropolítica, empreende, abertamente, uma política de extermínio da população preta através da violência policial voltada à perseguição de inimigos fictícios, os jovens pretos, e integrada a espaços específicos, as periferias.


Deste modo, a construção da ideia de um inimigo comum, que operacionaliza o extermínio dos corpos negros, permite enquadrar a realidade brasileira como uma guerra protagonizada pelas forças policiais. A origem dessa política voltada ao extermínio reside, principalmente, na busca em proteger a estrutura social vigente e garantir os interesses dos grupos política e economicamente dominantes. Perante tal conjuntura, elucida-se que o funcionamento do sistema capitalista depende dessa marginalização e eliminação da população negra, uma vez que é caracterizado pela intersecção de diversos sistemas de opressão e exploração. E, como forma de ocultar as incoerências do sistema, cabe ao Estado e aos veículos midiáticos reiterar a ideia da existência de um inimigo que deve ser combatido a qualquer custo para a preservação da “paz”.

Esse discurso, ao normalizar o extermínio, expõe essas incongruências de nossa sociedade, a qual busca a manutenção da paz e da ordem social por meio da desumanização dos corpos negros, que, não contemplados como seres humanos, são postos como alvos passíveis de formas inimagináveis de violência. Neste sentido, tendo em vista a conivência com a violência policial e as negligências estatais, percebemos que a pena de morte no Brasil somente foi abolida formalmente pela legislação, mas subsiste na prática. A sociedade condena a população preta à morte, seja negando-lhe os seus direitos fundamentais, seja arrancando-lhe a vida brutalmente.


A utilização estatal da polícia como máquina de guerra evidencia que o racismo estrutural define as condições de vida e de morte desses jovens negros periféricos. A naturalização das relações sociais racistas e da perseguição deliberada à população negra por meio da atuação arbitrária da polícia nos remete à época da escravidão. O sistema racista estruturado em nossa sociedade, ante a permanência da mentalidade escravagista, visa a manutenção das vantagens materiais nas mãos da branquitude, mesmo que isso custe a vida de milhares de pessoas pretas.



[1] AMPARO, Thiago. Utopia para meninos negros. Coluna na Folha de São Paulo, 24 de maio de 2020.

[2] Dados do Instituto Sou da Paz. Disponível em: http://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/analises-e-estudos/analises-e-estatisticas/boletim-sou-da-paz-analisa/?show=documentos#3936.

[3] Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017. Disponível em: https://www.forumseguranca.org.br/wpcontent/uploads/2017/12/ANUARIO_11_2017.pdf.

[4] O termo necropolítica foi criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe e consiste no poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer, em um contexto em que o “deixar morrer” se torna aceitável, mas não aceitável a todos os corpos. O corpo “matável” é aquele que está em risco de morte a todo instante devido ao parâmetro definidor primordial da raça. Fonte: https://www.politize.com.br/necropolitica-o-que-e/.


Referências Bibliográficas:


ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

LADO B do Rio #160. Entrevistadores: Alcysio Canette, Caio Bellandi, Daniel Soares e Fagner Torres. Entrevistado: Silvio Luiz de Almeida. [S.l.] Central 3, 07 de agosto de 2020. Podcast. Disponível em: <http://www.central3.com.br/160-silvio-almeida/>.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.

Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo. Pesquisa sobre o Uso da Força Letal por Policiais de São Paulo e Vitimização Policial em 2017. São Paulo, 2018.


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