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Jennifer Aline Ernesto de Oliveira

O Feminismo está preparado para deixar de ser branco e liberal?

**Sobre a autora: Jennifer é advogada, bacharel e mestranda em Direito na PUCSP, tem 26 anos. Nasceu e cresceu na capital de São Paulo. Para além da advocacia, tem amplo interesse em cultura, psicologia, sociologia e filosofia. Mas, para passar o tempo, gosta de assistir séries folclóricas.


Rafia Zakaria[1]

Enquanto mulheres brancas frequentam conferências sobre teoria feminista, mulheres pobres e de cor limpam suas casas e cuidam de suas crianças (ZAKARIA, 2021). É com essa forte afirmação que a paquistanesa Rafia Zakaria, que é escritora, advogada e ativista dos Direitos Humanos e trabalhou pelas vítimas da violência doméstica no mundo todo, invoca o questionamento de a quem pertence o feminismo, e publica o seu livro “Contra o Feminismo Branco”.


Ainda, a autora afirma que existe uma divisão dentro do feminismo sobre a qual não se fala, mas que se mantém inquieta sob a superfície por anos. É a divisão entre as mulheres que escrevem e falam sobre feminismo e as mulheres que o vivem, as mulheres que têm voz contra as mulheres que têm vivência, aquelas que constroem as teorias e as políticas e aquelas que carregam as cicatrizes e as suturas das brigas (ZAKARIA, 2021).


A denúncia é proposital e é realizada para gerar desconforto e reflexão. Então o movimento mais famoso do século teria divisões, problemáticas e opressões dentro dele? Sim. Não há que se falar de uma universalidade entre mulheres. As mulheres não são todas iguais, apesar de haver uma ânsia pela igualdade. Algumas mulheres são mais privilegiadas que outras, mesmo sendo mulheres. E essas mulheres são as mulheres brancas.


Não há uma afronta à individualidade da mulher branca, mas à branquitude dentro do feminismo. Isto significa que a luta é para que a supremacia branca seja cortada de dentro da luta feminista, esta tão absorvida pelo neoliberalismo[2].


A absorção da luta feminista pelo neoliberalismo é expresso nos diversos slogans como, por exemplo, “lute como uma garota”, a economia rosa, a liberdade sexual e o direito de escolha. A confusão é feita de forma proposital. Os símbolos da luta feminista foram embalados, perfumados e comercializados para que quaisquer pessoas com poderes aquisitivos pudessem comprar o slogan, mas não precisassem se movimentar para de fato efetivar a luta e provocar a mudança.


“Filantropos brancos e ocidentais doam dinheiro de bom grado para a educação de meninas de Bangladesh com o objetivo de melhorar a vida das mulheres, mas não estão dispostos a renunciar às roupas baratas de ‘fast fashion’ que são vendidas pelas grandes marcas norte-americanas e têm sua produção baseada na exploração de mulheres em países pobres”. (ZAKARIA, 2021).

Zakaria demonstra, assim, como as mulheres brancas, apesar de serem mulheres, são brancas e privilegiadas. Na época imperial - lê-se: período colonial, as mulheres brancas privilegiadas, quando estavam na busca do poder, se encarregaram de ir para outras nações em que o status da mulher branca era maior do que qualquer status dos colonizados. Ou seja, ainda que fossem mulheres - cidadãs de segunda classe -, a cor branca garantia a superioridade.


A autora faz questão de retomar o ambiente de colonização e guerra e demonstrar o papel das mulheres brancas para ênfase das opressões da branquitude nos territórios. Ou seja, a mulher branca guarda a figura de oprimida e opressora ao mesmo tempo. A mulher branca não compartilha do mesmo poder do homem branco, mas possui o privilégio da cor da pele. Assim, ela detém poder sobre todos os outros que não possuem a sua cor.


Nesse sentido, partindo de Simone de Beauvoir, a autora constrói a epistemologia[3] do feminismo como eminentemente branca, sendo que Beauvoir edificou esse lugar ao colocar a luta de gênero em destaque em contraponto a qualquer outra luta. No entanto, as práticas feministas de luta ao entrar em choque cultural demonstraram o distanciamento e a hegemonia da branquitude.


O feminismo hegemônico ou branco olha para as outras mulheres, como as muçulmanas, por exemplo, como oprimidas e isentas de fala, e afirma categoricamente que retirar as mulheres de sua cultura seria algo bom. Além disso, resgata o conceito de poder e empoderamento, os quais, no começo, tinham um conceito radical e político, e, em virtude da popularização e comercialização do termo, hoje ele se encontra esvaziado de sentido.


Ainda é demonstrado como o feminismo branco opera em relação às mulheres de cor marrom e das zonas de guerra. O contexto utilizado é da incitação à guerra norte-americana aos países de cultura islâmica, em que o paternalismo[4] branco se apropria da história, para contar de forma exótica e dessa maneira lucrar. Ou seja, há a objetificação e o produto da narrativa dos outros. Um exemplo é como as jornalistas brancas se tornaram mulheres “experts” em zonas de guerra.


E, quanto à ideia de que liberação sexual é empoderamento feminino, Zakaria provoca uma reflexão através da imagem de “Sex and the City”, seriado que trafega pelo mito de que a liberação sexual foi descoberta por mulheres brancas pioneiras que gostam de salto alto e de sair com homens emocionalmente indisponíveis. Lembrando que


“assim como os ocidentais de hoje têm essa visão caricata de todas as sociedades não ocidentais como atrofiadas e reprimidas sexualmente de forma grotesca, os brancos do século XIX pressupunham que todas as sociedades não ocidentais eram promíscuas demais” (ZAKARIA, 2021).

Tais ideias são elucidadas para diferenciar o feminismo de escolha e o feminismo pró-sexo, os quais, novamente, são vendidos como produtos perfumados, distantes da ideia de efetiva mudança social.


A autora explora o fenômeno da tokenização, que é a utilização de uma figura de mulher de cor como a representante de toda uma comunidade, desrespeitando as divergências e diferenças que existem entre as pessoas da mesma comunidade. E, com frequência, uma ou outra são escolhidas a dedo para vilanizar a comunidade de origem, e assim ser aceita no grupo hegemônico.


Apesar de haver pontos de discussão no livro que são profundamente relacionados com o contexto estadunidense, a temática não é distante das discussões sobre raça levantadas pelas feministas brasileiras como Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Djamila Ribeiro e tantas outras. O racismo tem sido intrínseco à luta feminista, tanto que a mulher negra tem sido, século após século “o outro, do outro, do outro”[5]. A mulher negra não é o segundo sexo, ela nem sequer entra em evidência porque é negra demais para ser mulher, e mulher demais para ser negra. E, apesar de Zakaria não elucidar a interseccionalidade em seu texto, é dessa forma que, tanto no contexto brasileiro[6] como no norte-americano[7], a questão da raça dentro do feminismo tem sido amplamente discutida.


E, claro, a autora não apenas pretende verbalizar os incômodos de décadas que feministas de cor têm em relação às feministas brancas para rivalizar ou degradar os feminismos. O livro demonstra como foi construída a luta feminista e como ela continua tensionada. Como é necessário o retorno constante à história e às origens das lutas e termos para não perder de vista a finalidade do movimento: a libertação das opressões das mulheres, independentemente de sua classe, raça, localização geográfica, religião e cultura. E, considerando tudo isso, está o feminismo pronto para extirpar a branquitude e o liberalismo que tem maculado a mudança estrutural?



[2] Epistemologia, em sentido estrito, refere-se ao ramo da filosofia que se ocupa do conhecimento científico; é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências, com a finalidade de determinar seus fundamentos lógicos, seu valor e sua importância objetiva. Em uma acepção mais restrita, a epistemologia pode ser identificada com a filosofia da ciência.

[3] Neoliberalismo: Neoliberalismo é um termo empregado em economia política e economia do desenvolvimento para descrever o ressurgimento de ideias derivadas do capitalismo laissez-faire (apresentadas pelo liberalismo clássico) que foram implementadas a partir do início dos anos 1970 e 1980. Utilizado especialmente a partir do final dos anos 1980, o termo passou a ser utilizado em lugar de termos como monetarismo, neoconservadorismo, Consenso de Washington ou reforma do mercado, entre outros, sobretudo numa perspectiva crítica. Seus defensores defendem políticas de liberalização econômica abrangentes, como privatização, austeridade fiscal, desregulamentação, livre comércio, e redução da despesa pública para reforçar o papel do setor privado na economia. Fonte: wikipedia.

[4] Paternalismo: é o nome que se dá a ações que limitam a autonomia e/ou a liberdade de certa pessoa ou grupo para o próprio bem destes. O paternalismo também pode implicar que tal comportamento é contra, ou à revelia, da vontade da pessoa atingida, ou também, que o comportamento expressa uma atitude de superioridade perante os outros. O termo é utilizado de forma pejorativa. Ainda, é direcionado para adultos é avaliado às vezes como tratá-los como se fossem crianças.

[5] RIBEIRO, Djamila. Mulher negra: o outro do outro. Disponível em https://www.geledes.org.br/mulher-negra-o-outro-do-outro/ Acesso em 10 de abril de 2023

[6] No ensaio “Interseccionalidade” de Carla Akotirene, a autora trabalha a construção do conceito de interseccionalidade no Brasil.

[7] Kimberlé Crenshaw cunhou o termo interseccionalidade nos anos 70 como uma demanda necessária nas discussões de classe, raça e gênero porque não havia um termo que comportasse as diversas opressões. Dessa forma, “interseccionar” seria um novo lugar, um encontro de várias opressões e dessa forma, um novo cenário para lidar com elas.



Referências Bibliográficas

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. 1ª Ed. Editora Jandaíra: 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. KVINDER, KØN & FORSKNING NR. 2-3 2006


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