A política brasileira sempre soa interessante ao campo das ciências humanas. Partidos que se dizem sociais-democratas se alinhando à direita; composições de governo que abrangem um espectro que vai de egressos da ditadura militar, passando por milicianos e chegando até lideranças de movimentos sociais de esquerda; narrativas épicas inventadas, as fake news; jogos passionais de conquista de cargos; mandos e desmandos baseados na vontade da classe dominante. Nada é óbvio logo de cara, mas nem por isso é inexplicável.
O presente momento não foge à regra. A volta dos valores democráticos se fez a um custo muito mais alto do que o esperado. A destruição física dos três poderes de Brasília mostrou que o extremismo do terror bolsonarista segue fixo no seio do ideário da população, ainda que seu líder tenha saído derrotado no pleito. 2023 é o ano que abre mais um ponto de interrogação da inconstante história da “Nova República”, um termo muito fraco para nomear o período que sucedeu 1985, com o processo de redemocratização. A história nunca foi a mesma e, tampouco, é inédita. Todos os fatores que levaram ao episódio narrado encontram raízes na efervescência de um povo insatisfeito com as condições de vida em seu país.
O que resta é retornar a 2013, que para muitos é considerado ponto de partida para os processos que vieram na sequência. Toda periodização é falha, mas neste caso, a história dessa década vê um forte traço do seu início nas chamadas “Jornadas de Junho”, que aconteceram dentro de uma conjuntura política específica que misturava diferentes grupos ideológicos num mesmo bloco de manifestantes em todo o país. O início do movimento, contudo, vinha das grandes cidades brasileiras (São Paulo e Rio de Janeiro), com uma demanda fortemente urbana: o reajuste da passagem de ônibus.
2011 e 2012 soavam como uma ponta de avanço social, em especial no que dizia respeito às manifestações políticas. A institucionalização da Comissão da Verdade [1] em 2012 era o suposto símbolo da superação do passado militarista e conservador. Em 2011, a “Marcha das Vadias” tomava as ruas de São Paulo e trazia a pauta da cultura do estupro como mote principal. Naquele mesmo ano o casamento homossexual era aprovado no Supremo Tribunal Federal. A “Marcha da Maconha” também ganhava notoriedade naqueles anos, quando passou a ser organizada formalmente, com pautas políticas estruturadas. Em dado momento esse caldo seria derramado sobre as demandas que se seguiram, dividindo espaço com indigestos vizinhos de manifestação: uma direita que se declarava apartidária como os integrantes do movimento “Vem pra Rua” ou o “Movimento contra a corrupção”. O primeiro formou figuras como o ex-ministro de Bolsonaro, Ricardo Salles, além de Kim Kataguiri, fundador do MBL (Movimento Brasil Livre); já o segundo foi a esteira política de Carla Zambelli, deputada bolsonarista ferrenha nos dias de hoje.
É preciso retornar, porém, para o centro da crise econômica do governo federal naqueles anos, que fez com que em 2013 o preço das passagens de ônibus subisse nas grandes capitais. O início das manifestações se deu dia 3 de junho daquele ano, quando aproximadamente 50 pessoas do MPL (Movimento Passe Livre) fecharam um trecho da estrada do M’Boi Mirim em São Paulo. Com o tempo, classes políticas de esquerda se juntaram a trabalhadores e a um movimento de juventude que só havia sido visto nessa magnitude com os “Caras Pintadas”, que se juntaram pelo impeachment de Fernando Collor nos anos 1990. É, porém, no dia 13 de junho que as manifestações crescem de tamanho e passam a incomodar o fluxo urbano. “Se a tarifa não baixar, a cidade vai parar!”, gritavam os manifestantes. É neste momento que a repressão policial entra em cena como um agente fundamental das Jornadas de junho. Entre emboscadas, bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, a violência começou a ser gravada pela mídia. Se as cenas fortes chocavam por um lado, por outro também eram motivo de indignação e participação. Depois que a mídia trouxe à tona o registro daquele dia, as manifestações nunca mais foram as mesmas.
Manifestantes protestam contra o aumento da tarifa do ônibus e metrô em São Paulo: Wikimedia Commons/Divulgação.
1 milhão de pessoas, 1 milhão de pautas. O aumento dos 20 centavos na passagem era o fósforo que acenderia o descontentamento de um país que assistia aos milhões gastos com a Copa do Mundo no mesmo quadro que um filho desempregado ou uma mãe na fila do hospital público gritavam por socorro. Foi, contudo, justamente a fuga de pauta que levou a uma crítica exacerbada do Estado. De repente, o neoliberalismo[2] passava a habitar o discurso. De repente, o próprio Estado nem devia existir, e todos os políticos não prestavam, e tinha que se acabar com a corrupção, etc. Esse discurso foi reproduzido inúmeras vezes e era dito com a inocência “apartidária”, tomando a forma de um grupo que arranjava briga com manifestantes que estivessem usando vermelho ou com a bandeira de algum partido de esquerda. De dentro da rebelião surgiu a contra-rebelião. Conservadores de direita representantes de tudo aquilo que o MPL era contra no início das manifestações, de repente se tornaram o centro das atenções.
A mídia começou a associar os manifestantes da esquerda com atos de violência, tratando do tópico dos Black Blocs, por exemplo, sem nenhum embasamento, como se fosse algo homogêneo e essencialmente mal. O documentário “Ecos de Junho” trata justamente do papel dessa figura em atrair a atenção policial e proteger o restante dos manifestantes da violência exercida pelos agentes do Estado. Uma discussão longa que era simplificada em benefício daqueles manifestantes “pacíficos”, que queriam o fim da corrupção como sua grande pauta.
Estes mesmos, tão reforçados pela mídia, viriam a ser os questionadores da reeleição de Dilma em 2014; os encorajadores do golpe constitucional que a tiraria do poder de forma arbitrária; os eleitores de Bolsonaro; os destruidores do Congresso Nacional, STF e Palácio da Alvorada; os terroristas que pintariam uma história lunática contra a vacina e a favor de um medicamento ineficiente contra uma doença que se alastrava ao redor do mundo. Feliz ano velho ao país que comemora 10 anos de uma massa enfurecida que não sabia o que era, mas que tinha certeza que faria da História seu parque de diversões e da Memória uma névoa fina e indizível, repleta do caos político brasileiro.
[1] A Comissão Nacional da Verdade foi um processo de investigação instituído pelo governo federal a fim de esclarecer violações de direitos humanos no passado do Brasil ( de 1946 a 1988)
[2] Conjunto de ideias surgidas para "consertar" o capitalismo de base Estatal. Sua prática econômica constitui criação de exército de reserva (desemprego); saneamento das contas públicas; financeirização da economia e repressão aos movimentos sociais.
Referências Bibliográficas:
ANTUNES, Ricardo. As rebeliões de junho de 2013. Observatório Social de América Latina, v. 14, n. 34, p. 37-48, 2013.
ECOS de Junho. Filme. Paulo Markun e Angela Alonso, 2021.
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