A Convenção de Belém do Pará (junho/1994), elaborada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e ratificada pelo Congresso Brasileiro, estabelece diretrizes, que devem ser implementadas pelos Estados partes na Convenção, para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, reconhecendo que essa constitui grave violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais. Para tal, a legislação dispõe sobre seu âmbito de aplicação, os direitos protegidos e os deveres do Estado.
Fonte: https://www.mulheressocialistas.org.br/convencao-de-belem-do-para-com-avancos-legislativos-conquistados-campo-da-prevencao-precisa-ser-melhor-trabalhado/
No que tange aos deveres do Estado, a Convenção determina implementar políticas e medidas necessárias para a concretização de seu objeto. Dentre elas, destacam-se aquelas cuja efetuação está vinculada à estrutura do poder judiciário. Nestes termos, a lei disciplina uma série de medidas relacionadas ao poder judiciário, que devem ser concretizadas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.
Contudo, a despeito do fato de o Brasil ter promulgado a Convenção nacionalmente, ao pensarmos acerca da proteção às mulheres vítimas de violência doméstica no cenário brasileiro, analisamos que o Poder Judiciário não é integralmente adequado às diretrizes postas, tanto sob perspectiva físico-estrutural, quanto mediante interpretação histórico-cultural. A pesquisa “Violência contra a mulher e as práticas institucionais”, da série Pensando o Direito (n. 52), publicada em 2015, estabelece parâmetros que permitem analisar os empecilhos institucionais ao acesso à justiça por mulheres em situação de violência, os quais, por sua vez, impossibilitam a efetiva proteção das vítimas. Essa pesquisa evidencia que elas são vítimas de dupla violência: primeiro, a violência doméstica no espaço privado, depois, a violência institucional perpetuada pelo poder judiciário, que marcadamente configura estrutura patriarcal e conservadora, inapta a conceder tutela suficiente à integridade dessas.
Do ponto de vista estrutural, a Convenção de Belém do Pará estabelece que cabe ao Estado agir com devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher, previsão que integra o poder judiciário, enquanto órgão estatal punitivo. Nesse primeiro aspecto, observamos, a princípio, que o judiciário brasileiro falha em proteger mulheres vítimas de violência doméstica, visto que não oferece estrutura física adequada e quadro de funcionários e profissionais suficiente para seu atendimento preliminar. Ao analisar a estrutura de alguns fóruns, a pesquisa demonstra que prevalece a falta de espaços físicos para o atendimento dessas mulheres: além de estrutura predial precária, as Defensorias Públicas não possuem espaço para garantir a privacidade e o acolhimento necessários. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) prevê equipe multidisciplinar nas Defensorias, como meio de garantir apropriada assistência às vítimas, englobando, além da proteção jurídica, tratamento psicológico e assistência social. Contudo, evidencia-se na realidade brasileira falta de profissionais, inclusive de defensores disponíveis para realizar o primeiro atendimento e atuar nas audiências, resultando em grande sobrecarga de trabalho e, consequentemente, na decadência da qualidade do serviço público prestado.
Ademais, aponta-se a ausência de juizados e defensorias públicas especializados em violência doméstica, fator que traz como efeito o atendimento totalmente precarizado e não atento às particularidades precisas para o completo acolhimento humanizado das vítimas. Especialmente, em relação à escassez de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulheres, sublinha-se a grande quantidade de processos acumulados, levando à demora processual e consequente falha da justiça em garantir rapidez em casos de urgência.
Dadas essas condições, desponta verdadeira impossibilidade de defensores e juízes prestarem os serviços jurídicos necessários, visando atendimento especializado e rápido. A estrutura do judiciário brasileiro rompe com a Convenção de Belém do Pará, ao ignorar que as situações de violência doméstica integram dimensão psico-social, que vai além da violência em si, sendo composta por aspectos psicológicos da vítima e por questões estruturais, sobretudo no que diz respeito à desigualdade de gênero em nossa sociedade. Nestes termos, ao não oferecer atendimento especializado e multidisciplinar, o poder judiciário aprofunda a situação de vulnerabilidade da vítima, perpetuando a violência privada no espaço público.
Esse atendimento especializado abrange a identificação das necessidades da vítima e a proteção de sua integridade física e psicológica. No tocante a esse aspecto, a Convenção prevê que cabe ao Estado adotar medidas jurídicas aptas a proteger a vítima de novas agressões. Buscando concretizar tal diretriz, a legislação brasileira integra o instrumento jurídico das medidas protetivas de urgência, que objetiva manter a proteção da mulher em situação de vulnerabilidade, impedindo o agressor de nova prática criminosa. Todavia, nem sempre isso é efetivo, havendo verdadeira dificuldade em garantir seu cumprimento. Apesar de o descumprimento dessas constituir crime, segundo a Lei Maria da Penha, a falta de estrutura e de funcionários especializados, no judiciário e na polícia, para lidar com as demandas da violência doméstica caracterizadas pela urgência, gera deficiência na agilidade e eficácia do atendimento, que em tese deveria ser rápido, deixando as mulheres desprotegidas e expostas a mais violência.
Por integrar a prática de crime, a violência doméstica envolve necessariamente a movimentação do aparato punitivo do Estado, exigindo a concretização do devido processo legal e eventual punição do agressor pelos seus atos, sob pena de perdurar sua impunidade. O caso de Maria da Penha, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2001, serve como exemplo de negligência do Estado brasileiro em efetivamente julgar e condenar os agressores, violando a previsão de agir com o devido zelo para punir a violência. O agressor de Maria da Penha ainda goza de impunidade, além da demora processual para seu julgamento, não lhe foi aplicada devidamente a pena legislativa por seus crimes.
Maria da Penha Maia Fernandes ficou paraplégica depois de ter levado um tiro nas costas enquanto dormia. Foto: Jarbas Oliveira. Fonte: https://brasil.un.org/pt-br/139554-lei-maria-da-penha-completa-15-anos-promovendo-o-enfrentamento-da-violencia-baseada-no
Esse caso reflete a insuficiência físico-estrutural que ainda se configura em nosso judiciário: o Estado foi incapaz de oferecer proteção suficiente à Maria da Penha, que sofreu dois atentados contra a própria vida, e de punir devidamente o agressor, ensejando sua impunidade. A não condenação do responsável revela a tolerância, por parte do Estado, da violência contra a mulher, reforçando padrão sistemático e estrutural que alimenta esse tipo de violência.
Ao tolerar a violência doméstica, o judiciário brasileiro não deixa de reproduzir a estrutura patriarcal, que dita a inferioridade social da mulher. Do ponto de vista cultural, a Convenção determina que cabe aos Estados tomar medidas cujo objetivo seja abolir práticas jurídicas que corroboram com a tolerância da violência contra mulher, combatendo a violência em sua forma institucional. Além do descaso estrutural do judiciário e da ineficácia da tutela jurisdicional, para proteção da vítima, prevalece a cultura patriarcalista entre os magistrados, resultando na intensificação da violência sofrida, haja vista que a mulher passa a ser vítima de violência perpetuada pelo próprio Estado.
Neste contexto cultural, entende-se que a resposta penal punitiva, sistemática e burocrática, não é suficiente para garantir a proteção das mulheres, uma vez que a raiz da violência doméstica permanece a ser alimentada: a cultura androcêntrica[1], que permeia toda a sociedade. Nestes termos, a Convenção se preocupa com a transformação dos padrões sociais e culturais que determinam a inferiorização da mulher, através de formulação de programas educacionais e políticas públicas, integrando educação e treinamento dos funcionários do poder judiciário responsáveis por tratar da violência doméstica, sob perspectiva feminista interseccional[2].
A publicação do deputado estadual bolsonarista - Jessé Lopes (PSL-SC) - ilustra a prática da cultura patriarcal, que tolera e alimenta a violência contra a mulher, tanto no espaço privado, quanto no público. Apesar de ser comprovado que Antônio Heredias Viveros praticou duas tentativas de feminicídio contra sua esposa, o deputado coloca em dúvida a veracidade dos fatos e exalta o agressor, perpetuando sua situação de impunidade. Fonte: https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2021-08-31/deputado-bolsonarista-ex-marido-maria-da-penha.html
No entanto, apesar de existirem alguns projetos neste sentido, o poder judiciário brasileiro ainda é marcado por expressiva cultura patriarcal, tendo em consideração que grande número de decisões são fundamentadas pela ideia de superioridade masculina, levando à naturalização da violência doméstica e ao fortalecimento da subjugação feminina à vontade do patriarca da família. Consolidando sistemática violência institucional, o judiciário atribui a culpa pela violência às próprias mulheres, por meio de análise sobre o seu comportamento e sob discurso da proteção da família. O sistema do poder judiciário evidencia tolerância institucional a violência contra a mulher e ao feminicídio, que abre margens para os crimes de ódio e misoginia.
Notas
[1] Cultura androcêntrica: diante da supervalorização do homem, consiste em prática estrutural de privilegiar e centralizar o ponto de vista masculino histórico-cultural, marginalizando culturalmente a feminilidade.
[2] Feminismo interseccional: o conceito de interseccionalidade integra a compreensão das diferentes formas de opressão que permeiam nossa sociedade e de como estamos sujeitos a tamanha violência, nos diversos espaços sociais, em decorrência do grupo que fazemos parte. A ideia do feminismo interseccional focaliza os múltiplos sistemas de opressão sobre as mulheres, evidenciando de que forma as violências discriminatórias são potencializadas na intersecção desses grupos.
Referência Bibliográficas
OEA – Organización de los Estados Americanos. Convención Interamericana para prevenir, punir y erradicar la violencia contra la Mujer.
Relatório 54/01, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, referente ao caso 12.051 (Maria da Penha Maia Fernandes).
Violência contra a mulher e as práticas institucionais. Pensando o Direito, n° 52, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2015.
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