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Giulia Grecco Spada

“A Resistência”, de Julián Fuks: entre o real e o imaginário

Densidade: talvez seja essa a primeira palavra que vem à mente ao tentar caracterizar o romance de Julián Fuks, A Resistência. O autor parece escolher cada palavra, cada metáfora, cada sequência. É a partir de frases extremamente densas que o narrador-personagem, Sebastián, conta o processo de escrita de um livro sobre a história de seu irmão adotivo e, consequentemente, recupera memórias vividas em família. Recupera ou as imagina e as traduz em palavras – não há como saber, pois nem ele mesmo parece ter claro o limite entre seu passado real e o que é fruto da imaginação. Vencedor do Prêmio Jabuti em 2016, o romance se passa entre o Brasil e a Argentina – lugar de onde seus pais fugiram da ditadura –, mas, principalmente, entre o real e o imaginário.

Logo no início do romance, em seu segundo capítulo, fica evidente o tom imaginativo: Sebastián tenta descrever o parto de seu irmão. Obviamente, nesse momento, sabe que suas palavras partem de uma confabulação, já que seu irmão nasceu de uma mulher anônima e muito antes dele mesmo nascer. O verbo imaginar aparece inúmeras vezes nas duas páginas que relatam o episódio de maneira dramática, caracterizado-o através de palavras que poderiam também descrever uma cena de tortura – “Não quero imaginar um galpão amplo, gélico, sombrio (...). Não quero imaginar uma mão robusta que o agarra pelas panturrilhas, os tapas ríspidos que o atingem até que ressoe seu choro aflito” (p. 11). Observa-se, inclusive, como sua imaginação está contaminada pela imagem de uma ditadura que não viveu.


O romance se segue em uma narrativa não linear, misturando memórias de infância à presente viagem do narrador à Buenos Aires, cidade da qual fugiram seus pais – junto ao irmão recém-adotado – em plena ditadura, exilando-se no Brasil. Nesse movimento, ele busca algo do passado pela cidade: visita o antigo apartamento da família e um museu. Tudo parece uma tentativa de encontrar peças que faltam em seu quebra-cabeças – ausentes seja pela incapacidade de armazenamento do cérebro humano, seja por, simplesmente, não ter vivenciado os momentos que deseja entender.


O protagonista, segundo as palavras de Sebastián, deveria ser seu irmão, sua história como filho adotado. Contudo, sem poder saber ao certo suas motivações ou seus sentimentos nos episódios narrados, Sebastián só pode deduzir e, assim, misturá-los aos seus próprios sentimentos. Não sabe se seu irmão se incomoda com o título de “adotado”, não sabe a razão pela qual deixou de frequentar Buenos Aires, não se lembra como era dividir com ele o quarto e, por fim, não sabe porque ele se trancafiou no quarto. Está consciente do que faz, entende da impossibilidade de transcrever seu irmão e sua história para um livro com total verossimilhança, o que se faz presente em diversos capítulos. Quase que em um ato inevitável, Sebastián escreve suas teorias e seus cenários hipotéticos, para negá-los logo em seguida, lembrando-se de tal incapacidade inerente.


“Isto é história e, no entanto, quase tudo o que tenho ao meu dispor é a memória, noções fugazes de dias tão remotos, impressões anteriores à consciência e à linguagem, resquícios indigentes que eu insisto em malversar em palavras. (...) procurei meu irmão no pouco que escrevi até o momento e não o encontro em parte alguma.” (p. 23)


É dessa forma que os eventos passados, à luz do presente, ganham novos significados. Atos passados adquirem novas motivações. Reações passadas são pintadas com exagero. Diante das fotografias, Sebastián examina cada expressão e formula suas hipóteses. Diante dos silêncios, indaga, muitas vezes sabendo que não encontrará respostas. “Quanto do aprender a resistir não será apenas aprender a perguntar-se?” (p. 79), escreve em um dos capítulos sobre a militância política de seus pais. É, talvez, através dessas perguntas que Sebastián resiste aos anos de ausência de seu irmão, que mesmo próximo fisicamente, se manteve isolado no quarto, negando-se ao diálogo e à rotina familiar.

Também seus pais reais e fictícios se misturam na trama, principalmente em seus aspectos políticos. Sebastián não viveu os anos de ditadura na Argentina, tampouco o caminho da família rumo ao Brasil, sendo assim, os eventos são por ele descritos com intensa teatralidade. O narrador traz episódios que, no penúltimo capítulo do livro, são contestados por seus pais, que os julgam demasiadamente dramáticos. Sua mãe exclama: “Não sei se essa mulher sou eu, me sinto e não me sinto representada, não sei se esses pais somos nós” (p. 135).


A reação de seus pais comprova que a fronteira entre o real e o imaginário foi desbotada no romance de Sebastián. Seu livro foi, enfim, como uma colcha de retalhos formada a partir das narrativas de seus pais, de suas próprias narrativas e de como as interpretou na contemporaneidade.


“escrever sobre a família e refletir tanto sobre ela não equivale a vivê-la, a partilhar sua rotina, a habitar seu presente. Penso no tempo: se desconheço a família, se tão pouca noção dela me resta, este é um livro velho. Penso no tempo: quantos anos levei para escrevê-lo, por quantos meses me isolei, há quanto tempo as histórias não são as mesmas, os conflitos se dissolveram?” (p. 133)


O romance se encerra no momento em que o irmão irá receber o livro, sem narrar sua reação ao personagem para o qual serviu de inspiração. Terá reconhecido, nessas páginas, mais de si ou de Sebastián?


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