O ambiente familiar é onde temos nossas primeiras vivências sociais, um ambiente de aprendizado que precede a escola e é responsável pela construção de nossa percepção da realidade. E, quando se fala em herança, pensamos nas casas que passam de pais para filhos, nas empresas, nas contas bancárias, nos carros e nos bens materiais. Porém, muito mais é transmitido de uma geração para a outra, transmitem-se vantagens materiais e imateriais, sejam elas econômicas, sociais ou culturais, ainda que todas estas estejam, de alguma forma, conectadas. Aqui, procurarei refletir acerca destas vantagens e desvantagens familiares, muitas vezes invisíveis - e propositalmente invisibilizadas -, mas que são um ponto fundamental para se entender nosso próprio lugar na sociedade.
Primeiramente, é preciso entender que o conceito de cultura empregado aqui não corresponde às atividades artísticas e sim ao padrão de comportamento, crenças e hábitos de certo grupo social. Socialmente, a cultura considerada legítima, ou seja, considerada a alta cultura, é a cultura da classe dominante da sociedade e da época em questão. Esta cultura varia, pois a elite está sempre lutando para diferenciar-se das demais classes e, à medida que aspectos de sua cultura se popularizam, ela se reinventa, buscando outros gostos inovadores e excludentes. Se antes os filhos da elite estudavam nas universidades públicas brasileiras, hoje vão estudar no exterior, já que o acesso a estas tem - a passos lentos - se democratizado.
Dentro deste contexto, as famílias estão sempre lutando para ascender socialmente ou, no mínimo, manter-se, criando formas de viver o presente e planejando o futuro com este objetivo. Portanto, não importa somente o poder aquisitivo ou a posição social estática de um indivíduo, mas a trajetória que já percorreu, o lugar onde quer chegar e as estratégias que usará para isso.
Isto reflete na maneira que criam seus filhos: estudos sociológicos comprovam que a classe social cria estilos parentais distintos, influenciando no comportamento social e cultural do indivíduo no futuro. Pais de classe média e alta, por exemplo, buscam organizar o dia-a-dia dos filhos preenchendo-o com atividades que, no futuro, resultarão em habilidades vantajosas ou em gostos da alta cultura - muitas vezes toda a rotina da casa é voltada para que as crianças façam aulas de piano, ballet, línguas, etc. Tal dinâmica está ligada, claro, à capacidade financeira da família, mas também à percepção da necessidade de um investimento estratégico de seus recursos.
Da mesma forma que as estratégias de criação transmitem uma herança cultural, esta também é adquirida pela simples convivência. Portanto, pode vir de diversas formas: uma estante cheia de livros, idas ao museu desde a infância, gosto pela leitura, convívio com intelectuais, uso rotineiro da linguagem “culta”. A cultura é também um sistema de valores, o modo que percebemos e hierarquizamos o mundo.
Além disso, nossas aspirações também são estruturadas socialmente, com base nas experiências dos que nos rodeiam. Quando um jovem de classe baixa cresce rodeado de trajetórias escolares frustradas, dificilmente enxergará no sistema educacional um caminho para ascensão social. Por outro lado, uma família de intelectuais incentivará e valorizará a trajetória escolar de seus filhos, que verão no ensino superior um futuro óbvio. Observa-se, portanto, a reprodução de um sistema de valores de cada família, ligado à classe social e transmitido de geração em geração. A sociedade acaba por determinar o destino de cada classe.
A escola, por sua vez, é um mecanismo de reprodução de privilégios e desvantagens. Isso porque, por trás do discurso igualitário de que a escola é um direito de todos os cidadãos, o sistema educacional exige dos alunos uma bagagem cultural baseada na cultura dominante. Tratar de maneira igual os desiguais é perpetuar a desigualdade. A exemplo dos critérios de avaliação das redações nos vestibulares: exige-se não apenas domínio da linguagem culta - incomum para muitos -, mas também capacidade de relacionar o tema com conhecimentos externos à prova e de argumentar de forma autônoma.
Obviamente, alunos advindos de famílias de alta posição social estarão em vantagem, já que dominam com naturalidade as habilidades exigidas e possuem uma bagagem cultural muito mais extensa. Estes alunos, que se destacam na trajetória acadêmica, são tidos como gênios, nascidos com um dom, levando os desfavorecidos a acreditarem que seu fracasso é fruto de uma incapacidade individual ou de uma falta de esforço, e apagando as vantagens herdadas pelos bem sucedidos. Tal teoria sociológica não é determinista, existem exceções nas quais a ascensão social através da educação é possível, mas devem ser tratadas como exceções.
Em suma, a escola não é o único meio no qual formamos nossa visão de mundo, pois exige um um conhecimento prévio, transmitido pela família. É, portanto, “um sistema que tem por função objetiva conservar os valores que fundamentam a ordem social” [1], transformando as desigualdades socioeconômicas em desigualdades educacionais, formalizando-as institucionalmente.
Grande parte da herança cultural passa despercebida, justamente porque o sistema - tanto no aspecto macro da sociedade, como no sistema escolar - é construído para convencer os indivíduos a se submeterem à sua sentença, sem espaço para questioná-la. Diante deste panorama, é interessante nos questionarmos quais influências tivemos dentro do âmbito familiar e como estas resultaram em vantagens ou desvantagens dentro e fora do sistema escolar.
[1] BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. Escritos de educação, 1998, vol. 9, p. 63
Referências bibliográficas:
BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. Escritos de educação, 1998, vol. 9, p. 39-64
ALMEIDA, Ana Maria F. A noção de capital cultural é útil para se pensar o Brasil. Sociologia da educação: pesquisa e realidade. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 44-59.
LAREAU, Annette. A desigualdade invisível: o papel da classe social na criação dos filhos em famílias negras e brancas. Educação em Revista, 2007, p. 13-82.
Comments