Antes de tudo, quero começar definindo o que seria uma arte socialmente engajada. Dessa maneira, definimos esse tipo de arte como práticas artísticas[1] de caráter interventivo, processual e participativo que se propõe a problematizar questões sociais. Ou seja, ela vem com a proposta de romper com o modelo de arte e de sociedade, sobretudo, com as posturas impostas pelo sistema político-econômico, questionando, assim, os valores e propondo justiça. Também, convida o público a interagir com a obra exposta, seja por meio do toque, cheiro, participação direta ou outros meios. Portanto, a arte engajada extrapola os muros da academia de artes e se dirige à população.
Agora que já sabemos o que é uma arte engajada, convido vocês leitores a se aprofundarem um pouco mais no que diz respeito ao tema deste texto. Desse modo, reunirei artes que retratam a situação de fome, desigualdade social e direitos humanos na arte nacional, apresentando um pouco sobre o contexto dessas artes e a importância que elas representam para o fortalecimento de debates a respeito de classe, raça e gênero.
Na literatura:
Quarto de despejo: diário de uma favelada
Da comunidade de Canindé, Carolina Maria de Jesus relata o cotidiano triste e cruel da vida na favela. Neste livro, a perspectiva é a de uma catadora de papel que só pôde chegar até o segundo ano do ensino fundamental. Mãe solteira e moradora da primeira favela de São Paulo, a Canindé, que foi desocupada em meados dos anos 1960 para a construção da Marginal Tiête. O livro relata a amarga realidade dos favelados na década de 1950: os costumes de seus habitantes, a violência, a miséria, a fome e as dificuldades para se obter comida. Mesmo após anos do lançamento do livro, a realidade das pessoas representadas nessa literatura-verdade[2] não mudou, sendo uma obra atemporal e que, infelizmente, continua denunciando as problemáticas das políticas atuais que excluem e levam pessoas à margem social e à miséria.
“Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu.”
A fome, inflação no preço dos alimentos e o aumento da pobreza descritos por Carolina no livro de 1960 poderia ter sido escrito nas favelas de 2021. A dura realidade da autora se assemelha à realidade de muitos brasileiros durante a pandemia do coronavírus: "Minha situação, a cada dia que passa, piora mais, porque sem trabalho é complicado demais. E, com criança pequena, eu não tenho com quem deixar. Os meus maiorzinhos, quando não tem comida, eu converso com eles e eles entendem. Mas os pequenos não entendem. A gente tenta ter um ânimo, mas não consegue, porque o desemprego está muito grande em todo lugar. É só angústia e tristeza, quem é mãe entende", relata Breda Souza Pimentel, de 26 anos e moradora da Petrolândia (PE). O mesmo é descrito por Carolina em um dos trechos de seu diário: "Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'Tem mais?' Esta pergunta 'tem mais' fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais"
Poema:”Tem gente com fome”de Solano Trindade
Nas pinturas e parangolés:
Tarsila do Amaral - “Segunda classe” (1933; Óleo sobre Tela; 110 x 151 cm; Coleção particular, São Paulo, Brasil)
Tarsila, uma das grandes artistas da arte moderna do Brasil, buscava retratar o que era o brasileiro, dentro do movimento antropofágico[3]. Nessa fase, Tarsila começa a construir uma arte socialmente engajada, daí veio a pintura “Segunda classe” com o intuito de expor e questionar os problemas advindos da industrialização e do capitalismo, que geram riqueza, mas não para aqueles que trabalham. A pintura possui tons de cores mortas e os traços dos corpos desconfigurados e membros grandes, trazendo um aspecto triste à pintura, que denuncia a desnutrição, desigualdade social, abandono social da classe dos trabalhadores imigrantes de São Paulo no século XX e a exploração de sua mão de obra.
Hélio Oiticica - “ Eu Incorporo a Revolta” (Nildo da Mangueira vestindo P 15 Parangolé capa 11 “Incorporo a revolta”, 1967. Foto: Claudio Oiticica).
“Os Parangolés, do artista brasileiro Hélio Oiticica, é um conjunto de obras que nasceram de ‘uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão’“. Parangolé é uma espécie de capa que se veste, com textos, fotos, cores, e que serve como uma obra-ação multisensorial.
“O objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora”. O Parangolé é “anti-arte[4] por excelência”, não se pode ir numa exposição de Parangolés, o espectador veste a obra e a obra ganha vida através dele, é capacidade de auto-criação, de expansão das sensações e rompimento.”
Assim, o parangolé incorpora um sentido interativo com o corpo e com uma mensagem que traz incômodos, questionamento e manifestação, revolta e engajamento. Nesse sentido, o parangolé trazido vem com a mensagem “incorporo a revolta” como forma de evidenciar que o indivíduo está se mobilizando em uma luta por justiça social do povo do seu meio, ou seja, luta pelos seus direitos humanos. Vale lembrar que “parangolé” é uma gíria que vem da vivência de uma comunidade social marginal e faz parte da cultura e das pessoas que estão nesses locais.
Música:
“A novidade”
Composta por Gilberto Gil, Hermano Vianna, João Barone e Felipe de Nobrega, a música é um retrato metafórico[5] da sociedade atual, que se divide entre os que predominam em meio a miséria social e ausência de direitos humanos, e os que usufruem de poderes políticos para abastecer seus luxos, daí sai o refrão “Ó mundo tão desigual // Tudo é tão desigual”. Também, é retratado na música a presença de uma sereia descrita pelo eu-lírico[6] como “Metade, o busto de uma deusa maia // Metade, um grande rabo de baleia”, assim, temos aí o retrato da divisão entre os dois grupos falados no início do texto. Podemos notar que a sereia é retratada a partir do olhar diferente de cada classe, explicitando que há um confronto entre ambas, uma vez que uma tem tempo de parar pra admirar a sereia e enxergá-la com olhos de poeta, já a outra não tem tempo para admirar, pois está em meio a uma luta de sobrevivência contra o tempo da fome “A novidade era o máximo // Do paradoxo estendido na areia // Alguns a desejar seus beijos de deusa // Outros a desejar seu rabo pra ceia”. Desse modo, não há dúvidas que o paradoxo[7] da música é a luta de classes[8], enquanto uma morre faminta, a outra sustenta seus luxos à custa da carne morta.
[1] Práticas artísticas: refere-se às maneiras de se fazer arte. Atualmente temos 11 nichos de arte: música, dança, pintura, escultura, teatro, literatura, cinema, fotografia, história em quadrinhos (HQ), jogos eletrônicos e arte digital.
[2] Literatura-verdade: A literatura-verdade está entre os gêneros que relatam fatos do cotidiano e histórias não fictícias. A exemplo, o gênero diário pode entrar como parte da literatura-verdade quando se têm relatos verídicos narrados.
[3] Manifesto antropofágico: o Manifesto Antropófago ou Antropofágico foi um manifesto literário escrito por Oswald de Andrade, publicado em maio de 1928, que tinha por objetivo repensar a dependência cultural brasileira.
[4] Anti-arte: uma arte experimental, fora dos padrões convencionais, superando os suportes clássicos do quadro e da escultura e invadindo o espaço para além de museus e de galerias. A anti-arte quebra a relação passiva do espectador com a obra, convidando-o e provocando sua participação direta no trabalho visto ou vivenciado.
[5] Metafórico: vem de metáfora, uma figura de linguagem que produz o sentido figurativo a uma palavra. Exemplo: Seus olhos são duas jabuticabas. (subentende-se as características da jabuticaba: pretas e redondas)
[6] Eu-lírico: Eu lírico é o nome que se dá à voz poética, ou seja, a voz que expressa emoções, sentimentos, pensamentos e/ou opiniões em uma poesia.
[7] Paradoxo: segundo o dicionário é uma aparente falta de nexo ou de lógica; contradição.
[8] Luta de classes: expressão originou-se a partir da teoria do sociólogo alemão Karl Marx. Trata-se do fenômeno social de tensão ou antagonismo que existe entre pessoas ou grupos de diferentes classes sociais devido aos interesses socioeconômicos e desejos dessas pessoas diante da lógica do modo de produção capitalista.
Referências bibliográficas:
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