Do ponto de vista filosófico, podemos compreender o ser humano como uma tabula rasa[1]: a maldade e a bondade não podem ser entendidas como noções que lhe sejam naturalmente intrínsecas. A maldade possui natureza social e relaciona-se com as interações sociais, constituindo a construção cultural de desvio[2] vinculada ao conhecimento de moralidade; o homem torna-se mau ou bom perante a consciência moral moldada pelo próprio corpo social. Consoante ao pensamento sartriano[3], a essência vem de escolhas, que são decorrentes da consolidação da consciência, cujas bases são as experiências. Nestes termos, diante do reconhecimento da possibilidade e propensão humanas ao iníquo[4], é necessário que o homem se debruce racionalmente sobre o tema da justiça, fundamentando-o em percepção que aponta e prepara para o bem, em meio à vida comunitária, com a finalidade de controlar e inibir a realização do mal.
A concepção de justiça é pensada, a partir de sua aplicação na realidade da vida em comunidade. A Teoria da Justiça (1971) desenvolvida por John Rawls[5] - um dos principais filósofos modernos voltado ao estudo deste tema-, vincula-se à aplicabilidade às estruturas sociais para propiciar seu efetivo funcionamento, determinando os direitos e deveres das instituições e dos indivíduos, mediante o conjunto de princípios aceitos pela comunidade política. Dessa maneira, a justiça apenas faz sentido quando pensada em relação ao ser humano como integrante de uma sociedade, não cabe o uso dos princípios da justiça aos animais e às forças da natureza, posto que esses últimos não integram a sociedade organizada e não podem ser malignos por carecerem da razão e, assim, da liberdade de escolha.
Portanto, a percepção da maldade como uma possibilidade humana é necessária para que a justiça tenha sentido. A prática da maldade tem origem nas escolhas livres e racionais do ser humano e, nesse sentido, é pertinente sua condenação racional, através do restabelecimento da equidade[6], cujos fundamentos envolvem perspectiva moral sobre a atuação humana. Justamente por isso que a justiça julga inimputáveis[7] aqueles privados da razão e incapazes de discernir seus atos. Disso entende-se que considerar o mal como um fator externo e excepcional significa afastar a possibilidade de condenação e esvaziar todo o sentido da aplicação da justiça.
Como forma de trazer essa discussão para um plano mais concreto, propõe-se a análise do nazismo. Sua compreensão está vinculada ao entendimento das atrocidades cometidas como uma possibilidade humana, pois os nazistas eram seres humanos que conscientemente optaram por caminhos imperdoáveis. Nesse contexto, considerá-los monstros e inumanos consiste em retirar-lhes a dimensão da maldade e os colocar em posição impossível de se julgar moralmente e impassível de condenação. Os atos cometidos em nome desse movimento totalitário eram desumanos, mas os indivíduos por trás dos atos eram pessoas humanas.
O documentário “Noite e Neblina” (1955)[8], ao abordar a dinâmica de funcionamento dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), evidencia a racionalidade humana empregada pelos nazistas para o desenvolvimento desses locais. A arquitetura dos campos de concentração, o transporte massivo dos prisioneiros e o estabelecimento do trabalho forçado foram pontos muito bem pensados e a desumanidade que perpassa essas estruturas deriva de escolhas humanas que, conscientemente, desconsideraram a humanidade dos grupos perseguidos. A grande prova dos campos como frutos de deliberação é a incorporação de lógica industrial em seu funcionamento. O documentário nos mostra que a organização interna e a disposição dos espaços prezavam pela eficiência até mesmo no tocante à exterminação em massa dos prisioneiros – a introdução das câmaras de gás visava justamente a “exterminação produtiva”.
Fotografia do Documentário Noite e Neblina de Alain Resnais e Jean Cayrol. Fonte: https://apostiladecinema.com.br/noite-e-neblina/
Afirmar que os campos de concentração seguiam lógica industrial significa reconhecer que as maldades ali perpetuadas integram as possibilidades humanas, pois imperava o que Zygmunt Bauman[9] denomina como burocracia do Holocausto: a racionalidade técnica e instrumental na instauração de procedimentos que buscavam a eficiência e o menor custo. O neuro psiquiatra austríaco Viktor Frankl, que vivenciou os campos de concentração como prisioneiro, reflete que estes campos permitiam que fossem reveladas as profundezas dos extremos da existência humana – a maldade e a bondade como possibilidades abertas para escolha. Nas palavras de Frankl: “O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou a câmara de gás, mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios” (FRANKL, 2017, p. 63).
Fotografia de Viktor Frankl. Frankl foi um neuro psiquiatra austriaco, autor do livro O homem em busca do sentido, no qual descreve sua experiência pessoal como prisioneiro de um campo de concentração nazista. Fonte: https://estadodaarte.estadao.com.br/viktor-frankl-e-a-busca-por-sentido/
O reconhecimento do maligno como uma possibilidade humana nos leva a refletir que o Holocausto não foi excepcional e isolado. Se este evento aconteceu uma vez, pode acontecer novamente, pois o regime nazista foi estruturado por seres humanos que perderam a capacidade de identificar humanidade nos outros homens, e isso é passível de ser repetido. Ao final do documentário “Noite e Neblina” (1955), faz-se reflexão de que não devemos acreditar que a “peste do totalitarismo” (Alain Resnais e Jean Cayrol, 1955) tenha sido enterrada junto com os escombros dos campos de concentração, tendo em vista que essa maldade não pertence a determinado país e tempo. A maldade humana, como face da racionalidade, é perpetuada quando interpretada como normal e aceitável, e isto pode se dar em qualquer tempo.
Sob esta perspectiva, o estabelecimento do Tribunal de Nuremberg (1945-1946) para o julgamento dos crimes nazistas inspira senso de justiça e conforto a todas as vítimas, extinguindo a ideia de impunidade em relação às atrocidades em massa. O julgamento legal das desumanidades, ao mesmo tempo que sustenta que a banalidade do mal não deve vigorar como uma escolha humana, concede senso de simetria moral entre o bem e o mal. Entende-se que este tribunal seria destituído de sentido se os nazistas fossem considerados monstros, uma vez que monstros não são perdoáveis ou imperdoáveis, mas não deliberam conscientemente. Somente os homens que tenham, arbitrariamente, reduzido a maldade à normalidade podem ser julgados pela justiça humana. A punição através do devido processo legal condiz com o reconhecimento da condição humana daqueles julgados individualmente.
Em manifestação contra os resultados das eleições presidenciais de 2022, cujo candidato eleito foi Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pessoas fazem gesto semelhante à saudação nazista ao cantarem o hino nacional brasileiro, em São Miguel do Oeste (SC). Esse episódio revela que, apesar de tudo o que o movimento totalitarista alemão representou e do genocídio resultante, apologias ao nazismo ainda são realizadas em todos os lugares, inclusive no Brasil. Para saber mais sobre esse ocorrido e seu significado jurídico, acesse: https://www.conjur.com.br/2022-nov-07/streck-menezes-gesto-nazista-sc-tudo-parece
A partir da compreensão de que o ser humano tem uma abertura tanto para o bem quanto para o mal, a justiça se torna um elemento fundamental para conter as possibilidades humanas do mal e sua perpetuação. O combate ao maligno, que leva à concretização de atrocidades e injustiças, por meio da justiça depende do discernimento do mal como face da racionalidade humana.
Notas
[1] Tabula Rasa: a expressão tabula rasa, proveniente do latim, significa literalmente tábua raspada, expressando sentido de “folha de papel em branco”. O filósofo inglês John Locke utilizou essa expressão para explicar que a mente humana nasce desprovida de qualquer conhecimento, sendo esse obtido através das experiências ao longo da vida, a partir das quais surge a inteligência e o raciocínio.
[2] Os desvios são condutas consideradas socialmente negativas, conforme os valores vigentes, adquirindo diferentes características de acordo com questões culturais e sociais. O desvio não existe naturalmente por si só, depende de construção social em contexto específico.
[3] Sartriano: Jean-Paul Sartre foi um filósofo francês conhecido como representante do existencialismo. O existencialismo é uma corrente filosófica que estuda a existência humana no mundo, buscando atribuir sentido à vida através dos conceitos de liberdade, escolha e responsabilidade social.
[4] Iníquo: sinônimo de mal e perverso.
[5] John Rawls foi um professor de filosofia política na Universidade de Harvard, autor de Uma Teoria da Justiça, Liberalismo Político e O Direito dos Povos.
[6] Equidade: a equidade diz respeito à garantia da justiça nos casos concretos, ao suprir as falhas e omissões das leis gerais quando aplicadas a casos marcados por particularidades.
[7] Código Penal: Inimputáveis. Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
[8] La Nuit et Brouillard. Alain Resnais et Jean Cayrol. França, 1955.
[9] Zygmunt Bauman foi um sociólogo e filósofo polonês, professor de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia
Referência bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1998.
FRANKL, E. Viktor. Em busca de sentido. Ed. 35. São Paulo: Editora Vozes, 2017.
GILES, Douglas. Understand that Nazis were not monsters or what happened once will happen again. Academia Letters, Article 499.
La Nuit et Brouillard. Alain Resnais e Jean Cayrol. França, 1955.
METTRAUX. Guénaël. Trial at Nuremberg, p. 5 a 15. In: Routledge Handbook of International Criminal Law, 2010.
ORENTLICHER, Diane. The Tokyo Tribunal’s Legal Origins and Contributions to International Jurisprudence as Illustrated by Its Treatment of Sexual Violence, p. 85-101. In: The Tokyo Tribunal: Perspectives on Law, History and Memory. Viviane E. Dittrich et al. (Org.). Brussels: Torkel Opsahl Academic EPublisher, 2020.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SILVA, Lúcia Cecília; VACCARO, Marina Meneguetti. A constituição do sujeito: reflexão a partir de Jean Paul Sartre. Revista de Psicologia, v. 07, n.02, p.99 a 109, dez. 2016.
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