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João Novazzi

Direito concorrencial: hein?

*Para a realização do presente artigo, contei com a colaboração do meu amigo e colega de trabalho, Marcos Tadeu.

Sabe quando você passa em diversos postos de combustível e todos eles apresentam o mesmo preço para a gasolina? Então. É sobre isso. E não “tá” tudo bem.


Depois de muito refletir sobre temas para a presente edição da revista, reparei que nunca tinha preparado nada a respeito do curso de Direito em si (no qual me formo no final deste ano – se tudo der certo). Além disso, andei percebendo que falo menos ainda da minha área de atuação, que é voltada especialmente para uma parte do Direito bastante desconhecida, pouco debatida e, não por isso, pouco importante.


É isso mesmo: serei um pouco sindicalista neste artigo e tentarei mostrar para vocês como a minha área é legal e, ao meu ver, importante para as relações sociais. Não pretendo apresentar teses mirabolantes ou conceitos extremamente complexos. Quero apenas apresentar a todos, da forma mais clara e didática possível, um pouco sobre o direito da concorrência, uma área que não é vista pelos estudantes no curso regular de graduação em Direito e que é desconhecida pela maioria esmagadora dos brasileiros, embora esteja diretamente ligada a diversos acontecimentos da vida cotidiana.


Em linhas gerais, o Direito da Concorrência é a área do Direito responsável por analisar, estudar e regular, sob a ótica econômica e legal, como se comportam, concorrencialmente, as pessoas e as empresas que atuam em um dado mercado[1].

Destaco que quem atua com Direito da Concorrência está sempre se confrontando com os pontos de contato entre duas grandes áreas, que são: o Direito e a Economia. Em outras palavras, o estudo da concorrência envolve a forma como as leis, no Brasil, foram escritas para regular e organizar as práticas comerciais das empresas – por exemplo, como elas buscam apresentar melhores produtos em relação às demais – e das pessoas – por exemplo, como as práticas das empresas afetam o comportamento do consumidor em um mercado, fazendo com que ele opte por comprar uma taça de vinho ou uma cerveja.


O Direito e a Economia, nesse sentido, devem conviver pacificamente no Brasil, de modo a promover a todos os cidadãos uma existência digna, fundada na valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, observando os princípios da soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, redução das desigualdades regionais, entre outros. Essa é a determinação da Constituição Federal de 1988, norma suprema do país, em seu art. 170[2].

Nesse sentido, a Constituição reconhece que a livre iniciativa é relevante, permitindo que qualquer um empreenda por conta e vontade próprias, sem que o Estado brasileiro interfira nessa decisão. Por outro lado, essa livre iniciativa deve respeitar certos valores que são bastante importantes para o caso brasileiro, como a redução das desigualdades (o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, segundo o Laboratório das Desigualdades Mundiais[3]) e a livre concorrência.


A livre concorrência, embora pareça um conceito difícil, pode ser compreendida como o direito que qualquer pessoa tem de entrar em um determinado mercado, oferecer produtos ou serviços e não ser prejudicada por outras. Ao mesmo tempo, a pessoa que quiser entrar em um mercado para oferecer produtos e serviços tem a obrigação de concorrer/de competir com as demais, não sendo permitido que ela faça acordos com outras que atuam no mesmo mercado para decidir os preços de produtos/serviços, dividir as áreas de atuação com outras pessoas, decidir qual a qualidade do produto/serviço e tampouco que troque informações sobre seus métodos de produção ou realização do produto/serviço. Explicando de outro modo, a livre concorrência é um direito e um dever, ao mesmo tempo: um direito de qualquer um entrar em um mercado para lucrar com a venda de um produto/serviço sem ser prejudicado por outros que atuam na mesma prática e um dever de atuar no mercado de forma efetivamente competitiva, sem fazer acordos com os demais.


Para assegurar a livre concorrência no Brasil, existe o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (o “CADE”), órgão responsável não só por investigar e decidir, em última instância, sobre a matéria concorrencial (mediante um Tribunal próprio, formado por Conselheiros indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Congresso Nacional), como também fomentar e disseminar a cultura da livre concorrência[4]. O CADE tem três funções práticas principais[5]:


(i) Preventiva: analisar e posteriormente decidir sobre atos de concentração econômica entre grandes empresas que possam colocar em risco a livre concorrência. Os atos de concentração são “operações empresariais de concentração econômica, são (...) vínculos estruturais de natureza estável (permanente ou duradoura) entre empresas independentes, com centros decisórios distintos para definição de estratégias empresariais”[6]. Nem todos os atos de concentração entre empresas são analisados pelo CADE. Entretanto, casos mais relevantes e com um maior potencial de impactar a economia, as outras empresas e os consumidores são analisados pelo CADE antes que sejam efetivamente concluídos, para que o órgão avalie se essas operações afetam negativamente o mercado.


(ii) Repressiva: investigar, em todo o território nacional, e posteriormente julgar cartéis e outras condutas nocivas à livre concorrência. Aqui, o CADE tem o dever de combater pessoas que atuam de forma a abusar da liberdade de vender produtos e serviços (prevista na Constituição), prejudicando os demais. O exemplo clássico e mais perigoso de conduta prejudicial à concorrência é o cartel, que é “qualquer acordo ou prática concertada entre concorrentes para fixar preços, dividir mercados, restringir produção”, dentre outras questões. Os cartéis, “por implicarem aumentos de preços e restrição de oferta”, causam graves prejuízos aos consumidores, “tornando bens e serviços completamente inacessíveis a alguns e desnecessariamente caros para outros”[7].


(iii) Educativa: instruir o público em geral sobre as diversas condutas que possam prejudicar a livre concorrência; incentivar e estimular estudos e pesquisas acadêmicas sobre o tema, firmando parcerias com universidades, institutos de pesquisa, associações e órgãos do governo; realizar ou apoiar cursos, palestras, seminários e eventos relacionados ao assunto; editar publicações, como a Revista de Direito da Concorrência e cartilhas.


No caso da atuação preventiva, cito o caso Disney/Fox[8], aprovado pelo CADE em 2020. Na ocasião, a compra da Fox pela Disney foi aceita pelo órgão, contanto que a Disney mantivesse na grade de programação, por três anos ou até o término de seus respectivos contratos, todos os eventos esportivos distribuídos no Brasil naquela época. A empresa também deveria manter o canal principal da Fox Sports com o mesmo padrão de qualidade existente no período, incluindo a transmissão dos jogos da Copa Libertadores da América, até o dia 1º de janeiro de 2022. Após esta data, os eventos dessa competição deveriam ser transmitidos em algum de seus canais afiliados, até o final do atual contrato com a Conmebol. Dessa forma, qualquer pessoa que é fã de futebol e gosta de acompanhar o seu time (ou secar os rivais) na Libertadores da América foi impactado pelo caso, e, certamente, ficou em dúvida sobre como encontrar os jogos na TV.


No caso da ação repressiva, um exemplo bastante famoso – e, infelizmente, bastante comum em todo o Brasil – é o caso do cartel das autoescolas de Recife, Pernambuco, condenado pelo CADE em 2015[9]. Na ocasião, o CADE entendeu que as autoescolas da cidade estavam cobrando, de forma acordada e consciente entre si, os mesmos preços dos alunos. Consequentemente, isso faria com que os consumidores ficassem sem a possibilidade de escolher diferentes autoescolas em razão do preço, e os donos das autoescolas puderam lucrar muito mais no período, visto que estipularam preços com seus amigos e, para que isso ocorresse, certamente impuseram valores mais interessantes para eles próprios (o que, inversamente, significa preços maiores para os consumidores). Essa é uma questão bastante delicada em todo o Brasil, e eu, particularmente, já presenciei situação similar na época em que tirei minha primeira habilitação. Recordo-me com clareza de visitar algumas empresas para verificar as condições e os preços das aulas e escutar de funcionários que não haveria diferença, visto que “é tudo tabelado” (ou seja, todas cobram preços iguais). Isso é um absurdo do ponto de vista do Direito da Concorrência e, assim como em outros casos de condutas lesivas à economia, fazem com que os concorrentes fiquem relaxados, sem tentar uma melhoria na prestação de seus serviços.


Já a função educativa do CADE foi bastante forte, por exemplo, na pandemia, quando o órgão apresentou à sociedade orientações sobre em qual medida a colaboração de empresas concorrentes poderia ocorrer de forma excepcional durante a instabilidade gerada pela Covid-19[10]. Na mesma época, o CADE alertou[11] para os riscos de um Projeto de Lei que buscava obrigar a redução das mensalidades em instituições de ensino durante a pandemia.

Em resumo, finalizando o meu momento de sindicalista inspirado, espero ter conseguido demonstrar, ainda que de forma breve, o impacto do Direito da Concorrência na vida de cada um de nós. O poder econômico das empresas é válido, legal e importante para a economia. O abuso por parte de uma empresa, contudo, prejudica não só os seus concorrentes como, muitas vezes, toda a cadeia de produção, e nós, os consumidores finais.

Os acordos entre concorrentes, por mais que, em algumas ocasiões, pareçam um ato de bondade ou benevolência, são, na verdade, conforme demonstrado, altamente danosos e prejudiciais ao ambiente econômico, e isso é ainda pior quando os acordos envolvem preços ou formas de divisão dos mercados. E esses acordos, seja entre companhias aéreas bilionárias, grandes empreiteiras ou autoescolas, impactam direta ou indiretamente as nossas vidas. Dessa forma, defendo a ampla divulgação do Direito da Concorrência na sociedade, pois é com o conhecimento e discernimento que se combate o abuso e a violência dos poderosos contra o bolso e o prato do brasileiro.



[2] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Último acesso em 04/05/2022.

[5] Idem.

[6] NETO, Caio Mário da Silva Pereira; Direito concorrencial, p.52.

[8] Notícia do Cade sobre o caso está disponível em: http://antigo.cade.gov.br/noticias/cade-aprova-com-restricoes-compra-da-fox-pela-disney. Último acesso em 04/05/2022.

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