Quando pensamos na estrutura educacional do Brasil, vemos uma imagem aterradora, disforme, apática e profundamente assimétrica. Se de um lado as universidades públicas produzem muito conteúdo de qualidade, elas o fazem a grandes custos, com pouquíssimo incentivo governamental e milhares de bloqueios burocráticos. Um breve exemplo é que em 2021 o Governo Federal aprovou a redução da verba científica em mais de 500 milhões de reais, nos deixando com meros 55,2 milhões[1]. Considerando a população atual do Brasil, de 213 milhões de habitantes[2], isso nos deixa com aproximadamente 25 centavos de investimento na ciência por pessoa no Brasil. Como professora, eu sinceramente não poderia estar mais desesperada.
Neste texto, porém, não buscarei destrinchar a enorme falta de cuidado que a educação nacional está recebendo. Acredito que conseguimos ver isso claramente, e que o assunto já esteja sendo relatado, vivido e discutido por muitos. Buscarei aqui retratar a minha experiência como professora em dois ambientes distintos: um programa de ensino de línguas da USP, realizado no Centro de Estudos Linguísticos da ESALQ – Piracicaba; e as experiências em escolas particulares de ensino de línguas que vivenciei e presenciei durante os anos.
Trazendo esse recorte do campo da educação, traçarei um paralelo entre a experiência da educação fora de um ambiente que visa qualquer perspectiva de lucro, voltado totalmente ao benefício da comunidade (programa da USP), e a experiência nas escolas que buscam, acima de tudo, o lucro, a manutenção do corpo discente em números e se desviam de qualquer verdade inconveniente a fim de alcançar os resultados esperados. Essa segunda realidade me mostrou o quão pobre pode se tornar a educação quando o seu fim não está em si mesma.
Começando com o programa de línguas da ESALQ, eu poderia me deixar levar linhas a fio delineando o quão enriquecedora essa experiência me foi como ser humano, como indivíduo, como profissional, mas mais enriquecedor do que isso, para o mundo, acredito que tenha sido a minha visão panorâmica de como e porquê aquela instituição funciona tão bem, e tem resultados tão promissores com seus alunos. Portanto, focarei nessas razões.
Primeiramente, o programa é gratuito para os alunos. A USP remunera os professores estagiários de forma excelente, mas os recursos para isso não vem dos alunos. Entre o corpo de mentes aprendizes do programa estão alunos de graduação da USP, professores e funcionários. Sendo gratuito, obviamente é muito disputado, e embora funcionários e professores tenham vagas garantidas, por não participarem em tão grande número, os alunos precisam de nota acima de 8 no boletim para serem automaticamente aprovados – e restando vagas, as notas abaixo de oito são também escolhidas para adentrar o programa. Esta é uma simplificação extrema do processo, mas através dela já é possível tirar algumas conclusões.
A gratuidade do programa, em primeiro lugar, faz com que apenas pessoas realmente interessadas estejam lá. Não há filhos obrigados pelos pais, funcionários obrigados pela empresa, trabalhadores obrigados pela inflexibilidade do mercado de trabalho – realidade de muitos alunos nas escolas particulares. Apenas pessoas com a real vontade de estar ali e aprender. Para qualquer professor, isso criticamente muda a atmosfera da sala de aula, tornando-a intensamente mais produtiva e engajada. Consequentemente, é mais fácil e fluido de se trabalhar.
Porém, pela mesma razão de que essas pessoas estão lá por vontade própria, também saem por vontade própria, sem nenhum contraponto monetário. Não há contrato que os faça pagar todas as mensalidades até o final do semestre, se não conseguirem, não quiserem, não se sentirem confortáveis em terminar o curso. Por isso, o curso tem uma taxa de evasão gigantesca. Muitas vezes, mais da metade dos alunos da sala sai até o fim do semestre.
Esse fato pode assustar um professor de primeira viagem, mas com o tempo fica claro que a liberdade de ir e vir, de não amarrar o aluno pelo seu capital, é essencial para a fluidez e produtividade da educação naquele espaço. E uma diferença gritante é sentida entre aqueles que frequentaram esses dois ambientes – o gratuito-social e o lucrativo-privado.
Toda essa diferença apenas vinda do aluno já é significativa, mas agora vamos a quem de fato faz a educação girar: o professor. O gerenciador do aprendizado, como é tido por autores como Jim Scrivener (2011), não precisa se preocupar com a maioria dos números relevantes nas escolas particulares: quantos alunos ficarem no fim do semestre não importa; quantos alunos passam de ano não importa; quanta lição de casa é de mais ou de menos para o aluno não espanar, não importa; você pode ser humano na sala – ter sua opinião política, ideológica, discuti-la e abri-la para debate, usá-la como material de estudo, sem ter o medo de que a intolerância do aluno te demita, te prejudique com o chefe, porque isso não importa.
O centro daquele espaço é a educação. O fim do programa é a educação. Sem a amarra do visar o lucro, o professor é livre para ter um único objetivo: não se preocupar com o que os números mostrarão ao chefe ou com o que eles dirão sobre a sua continuidade na empresa. Sendo estagiário, sem poder ser efetivado, você já sabe o seu prazo. O único objetivo do professor é, naquele espaço, a educação. A possibilidade deste profissional se dedicar exclusivamente a este fim é o que dá a qualidade superior do ensino ali e, portanto, dos resultados: notas altíssimas e muitos alunos que vão do básico ao avançado durante seus 4 ou 5 anos de graduação, terminando o curso na sala Chatting in English – onde não se tem mais livros, apenas o treino oral do inglês no dia a dia, nas conversas sobre os mais diversos tópicos. Existem, inclusive, três salas de cerca de 8 alunos de Chatting, o que é uma alta demanda para um nível tão avançado.
Os objetivos, portanto, da instituição, dos professores e dos alunos se alinham: aprender.
Fora dessa realidade utópica, criada pela não objetividade ao lucro, estamos todos presos, enjaulados e amordaçados. Professores, alunos e proprietários, digladiando-se por seus objetivos distintos: trazer o pão, aprender e lucrar, respectivamente.
O aluno na escola particular ocupa dois lugares sociais: o de aprendiz e o de cliente. Assim, é comum o aluno ignorar o lugar do professor, passando por cima da hierarquia e deixando de lado o conhecimento de campo do profissional simplesmente porque pode. É a lógica do “cliente sempre tem razão”.
Pessoalmente, já vi essa soberania do cliente levar a lugares aterradores: utilização de métodos arcaicos do ensino de língua estrangeira, como a tradução, só porque o aluno requer, e não porque de fato funciona. Outros exemplos: uso de material com o qual o professor não tem experiência porque o aluno prefere; e atendimento em horários insalubres porque o aluno requer - mesmo que não seja frutífero para nenhuma das partes.
Para além da lógica do cliente sempre tem razão, existe o proprietário/chefe, que sempre acaba deixando a qualidade de lado se necessário, visando sempre a receita final. Testemunhei contratações de professores com zero experiência, certificação ou mesmo conteúdo para preencher horas vagas - como deixar os alunos sem professor por um tempinho e perdê-los para outra escola?
Vi a atribuição de professores na educação infantil mesmo sem eles terem experiência ou material. Além disso, os superiores não providenciaram material algum. Mas é claro que isso não gerou problema para os superiores, afinal, é fácil enganar uma criança, ou os pais dela, fingindo alguma dificuldade de aprendizado, e não uma falha estrutural ou metodológica.
Aquele que visa o lucro não dirá que não tem os meios de prover determinado serviço. Ele se desdobrará a todo custo. Dobrará o professor, os alunos, os responsáveis, o método, o que for preciso para que o aluno-cliente continue ali, preso financeiramente às suas garras.
A verdade é que a privatização do ensino de línguas abriu portas e janelas para que passassem mentiras e para que os alunos fossem copiosamente enganados com promessas de resultados milagrosos, métodos mágicos e nativos inexperientes no papel de professores. Vê-se placas de “fluência em 18 meses” no mesmo espírito de “trago a pessoa amada de volta em 7 dias”.
Paulo Freire nos trouxe que a educação deve ser libertadora. Mas quando ao relento do capital, a educação é o oposto de libertadora. O capital torna a educação uma câmara de tortura para todos os participantes, e é só com o investimento massivo do corpo público, do governo na educação, que veremos ela florescer e prosperar para além da réles grama batida que é agora no Brasil.
[1] De acordo com https://ograndeabc.com.br/2021/11/23/com-falta-de-investimento-em-educacao-e-ciencia-brasil-perde-talentos-e-cai-em-indice-de-competitividade/
[2] De acordo com https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/08/28/populacao-do-brasil-confira-curiosidades-sobre-os-numeros-do-pais.ghtml
Referências bibliográficas:
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1986.
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