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Marina Mascarenhas

Estado Plurinacional da Bolívia: 36 nações

Meu interesse pela Bolívia começou desde pequena, o pai da minha mãe - que infelizmente não conheci - era boliviano. Sempre escutei minha avó falar muito sobre as viagens que ela fazia por lá, como a família era simpática e as paisagens eram lindas. Mas nunca foi além disso. Até que, na faculdade, durante uma aula de política, ouvi falar sobre algo chamado "Estado Plurinacional" e fiquei muito intrigada: normalmente, quando pensamos em Estado, logo já associamos o termo à palavra nação e vice-versa. Então como funcionaria um Estado que possui várias nações diferentes? Este é o caso de alguns países, como a Bolívia.


Primeiramente, é importante dizer que Estado e Nação não são sinônimos. O Estado corresponde ao governo que zela por um determinado povo, em um território específico. Parafraseando Max Weber[1] "Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determi­nado território", ou seja, Estado diz respeito às autoridades políticas e administrativas. Já a nação tem relação com a cultura humana, costumes e hábitos compartilhados dentre um determinado povo, é algo subjetivo, que pode sim variar entre membros de um Estado. É fácil entender isso quando se pensa, por exemplo, nas diferenças culturais dentre as pessoas que moram em Santa Catarina e no Ceará: fazem parte de um mesmo Estado, mas possuem culturas completamente diferentes.


Nesse sentido, pode-se pensar que, como a Bolívia possui quase 50% de sua população formada por 36 povos indígenas diferentes[2], pode ser entendido que o país é composto por 36 nações diferentes. Essa é a perspectiva compreendida pela Constituição Plurinacional do país - esta foi promulgada em 2009, após uma consulta popular com 61,43% de aprovação, na qual cerca de 90% da população boliviana participou. Isso significa que a Bolívia seguiu o caminho contrário ao ocidental imposto desde sua colonização, para se apropriar de um modelo possuidor de uma representação real de seus povos, nas palavras de Boaventura de Souza Santos[3]: "plurinacionalidade é uma exigência para o reconhecimento de outro conceito de nação, a nação concebida como uma pertença comum a um grupo étnico, cultura ou religião".



Historicamente, a Bolívia e grande parte dos países da América Latina possuem um trajeto muito árduo no âmbito político, principalmente quando se trata das populações originárias. Inicialmente, a colonização tornou os territórios meros fornecedores de matéria prima - processo responsável por dizimar milhares de indígenas e promoveu a escravidão. Depois, veio a independência e a implementação do "Estado Moderno", que tem sua origem em ideais homogeneizadores e excludentes, os quais procuram constituir uma identidade nacional e silenciar as identidades destoantes - ou seja, mais uma tentativa de apagar a cultura dos povos indígenas. E, posteriormente, com os governos ditatoriais financiados pelos Estados Unidos, que se aproximavam da ideologia neoliberal e não tinham nenhuma preocupação com a preservação e valorização desses povos. Como bem resume Magalhães[4]:


[...] Um fator comum nestes Estados é o fato de que, quase invariavelmente, foram Estados construídos para uma parcela minoritária da população, onde não interessava para as elites econômicas e militares, que a maior parte da população se sentisse integrante, se sentisse parte de Estado. Desta forma, em proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos) assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer ideia de nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais.


Dessa maneira, a população boliviana decidiu dar um basta nessa situação com o referendo de 2009, de modo que, a partir de então, a constituição do país iria refletir a diversidade presente no território, sendo mais inclusiva politicamente. Assim, de acordo com Magalhães[5] essa Carta Magna pautada na autodeterminação dos povos[6], permite que as 36 nações partilhem e participem efetivamente de um mesmo governo por meio da democracia participativa[7]. O país agora é organizado em quatro níveis de autonomia distintos: o departamental, o regional, o municipal e o indígena. Cada comunidade indígena pode eleger seus participantes através de suas próprias normas, como também possuir seus próprios tribunais em concordância com a justiça tradicional de cada povo. Além disso, os recursos hídricos, florestais e direito sobre a terra localizados em cada comunidade, se tornaram de propriedade do grupo indígena correspondente.


Dessa forma, a nova constituição promoveu uma reformulação completa do aparato estatal boliviano, que, apesar de ainda estar relativamente preso a algumas concepções ocidentais (toda a ideia de Estado Moderno e a maneira como nós o conhecemos atualmente é de origem europeia), vai se abrindo lentamente a outras possibilidades de governo[8]. É muito interessante pensar que as comunidades presentes na Bolívia tiveram a chance de se unir e se apropriar de algo que lhes foi roubado há alguns séculos atrás, e transformar isso em uma forma inclusiva e dialógica de governo.


Como conclusão, gostaria de enfatizar que meu propósito ao redigir esse texto não é fazer um estudo teórico de como é o funcionamento do Estado Plurinacional, ou fazer uma análise crítica da forma de organização política do país, mas sim mostrar que existem outras alternativas àquelas que nós estamos acostumados. De vez em quando, nós ficamos tão passivos quando nos deparamos com mudanças estruturais ou sistêmicas, que pensar em algo novo não chega nem a ser uma possibilidade. Contudo, a Bolívia está aí para mostrar que sim, é possível ir contra a corrente e tentar mudar o que parece imutável. Não sei se o caso boliviano encantou você tanto quanto me encantou, porém pelo menos espero que ele tenha mostrado que as coisas não precisam ser do jeito que foi imposto a nós.


[1] 1982, p.98

[2] Informações retiradas do site da organização global de direitos humanos IWGIA - Grupo Internacional de Trabalho sobre Assuntos Indígenas, que procura proteger, defender e promover os direitos dos povos indígenas.

[3] Apud WOLKMER; FAGUNDES; 2011, p.392. Originalmente em espanhol: "la plurinacionalidad es una demanda por el reconocimiento de otro concepto de nación, la nación concebida como pertenencia común a una etnia, cultura o religión".

[4] 2008, p. 206.

[5] 2008.

[6] Esse princípio exprime que todos os povos têm direito de de autogoverno, liberdade e de escolherem sua situação política livremente.

[7] De acordo com Morais (2021), é uma forma de democracia na qual a participação popular deve ser tanto quantitativa quanto qualitativa, ou seja, ir além do voto; dando ao povo mais autonomia para exercê-la diretamente.

[8] SANTOS, 2012.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANGELO, Tiago. Referendo constitucional que refundou Bolívia como Estado plurinacional faz 10 anos. Brasil de Fato, 2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/01/25/referendo-constitucional-que-refundou-bolivia-como-estado-plurinacional-faz-10-anos Acesso em: 17 set. 2021

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Plurinacionalidade e Cosmopolitismo: a diversidade cultural das cidades e a diversidade comportamental nas metrópoles. Revista Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 53, p. 201-216, jul./dez. 2008

MORAIS, João Pedro Ribeiro. Democracia participativa e representativa. Jus, 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89423/democracia-participativa-e-representativa. Acesso em: 20 set. 2021

Pueblos Indígenas en Bolivia. IWGIA. Disponível em: https://www.iwgia.org/es/bolivia/3736-mi-2020-bolivia.htm. Acesso em: 17 set. 2021

SANTOS, Braulio de Magalhães. Plurinacionalidade, Estado Multicultural e Direitos Humanos. Espaço Jurídico. Joaçaba, v. 13, n. 1, p. 31-52, jan./jun. 2012

WEBER, Max. 1982. Ensaios de sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Zahar. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3952424/mod_resource/content/1/Max%20Weber%20-%20Ensaios%20de%20Sociologia%20-%20Gerth%20%20Mills.pdf. Acesso em: 17 set. 2021

WOLKMER, Antonio Carlos; FAGUNDES, Lucas Machado. Tendências contemporâneas do constitucionalismo latino-americano: Estado Plurinacional e Pluralismo Jurídico. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 371-408, jul./dez. 2011


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