Nos anos 1930, emergiu no meio intelectual brasileiro uma gama de pensadores que podem ser chamados de “modernistas”, engajados na resposta para uma grande pergunta: “quem é nosso povo?”. O interesse nessa temática vinha da dificuldade de compreender a identidade nacional, repleta de contradições. Gilberto Freyre surge junto desse universo de ideias. Graduado em sociologia pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, ele se torna o primeiro grande acadêmico brasileiro a nível mundial[1].
Atualmente Freyre é mais conhecido por ser criador da ideia de “democracia racial”[2], ou seja, a visão de um Brasil miscigenado e apaziguado, que ignora a violência que os anos de escravidão proporcionaram. Por mais que sua obra esteja ultrapassada, ela tem uma grande contribuição ao inaugurar o tópico do cotidiano brasileiro colonial, ou seja, entre os anos 1530 e 1800 (do início do século XVI, com o início da colonização, até o final do século XVIII, quando se aproximava a independência).
Para o autor, a família, enquanto instituição escravocrata e patriarcal, impõe mais respeito do que a própria Igreja no contexto colonial. A casa-grande era o centro dessa estrutura, mas sua ligação com a senzala era umbilical. A família brasileira entre os séculos XVI e XVIII era composta por uma série de agregados, pessoas a quem se deviam favores, filhos bastardos e outros dependentes dos patriarcas. Nesse período, predomina a propriedade rural e semi-rural, fazendo do latifúndio monocultor[3] o “cenário” dessa reunião de indivíduos.
Para Freyre, "vivo e absorvente órgão da formação social brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas”[4]. Foi dessa forma que o nepotismo[5] e o oligarquismo[6] na política se propagaram através de gerações. É possível afirmar que o poderio de famílias como os Sarney no Maranhão e os Magalhães na Bahia nos dias de hoje são um exemplo da sustentação política através de conexões familiares, já que esses mesmos sobrenomes empossaram incontáveis prefeitos, governadores e até um presidente da república. Freyre apresenta essa questão ao falar sobre as terras da Bahia nos tempos da Colônia: “uma imensa parte de suas terras chegou a pertencer quase toda a duas únicas famílias, a do Senhor da Torre e a do mestre-de-campo Antônio Guedes de Brito”[7].
Apesar dessa relação com o Estado e a política, o sociólogo faz questão de afastar sua análise do centro do poder burocrático[8], opondo a família patriarcal à própria metrópole portuguesa, que administrava a colônia. Pode-se dizer que Freyre anteviu a ideia de um “jeitinho brasileiro”, que é capaz de burlar a lei apenas com a lábia. Essa visão, obviamente estereotipada, foi outro foco de crítica de livros do autor como “Casa Grande e Senzala”. Além de enxergar uma “escravidão adocicada”, Freyre entendia como positiva a miscigenação, capaz de criar um indivíduo adaptável, maleável, malandro.
A “mestiçagem” é enxergada em sua obra como uma forma de aculturamento, onde se operavam trocas identitárias e sexuais. Para ele, a contrapartida desse processo era a “sifilização”, a difusão de uma pandemia de sífilis entre os habitantes da colônia. À época que foi lançado “Casa Grande e Senzala”, a crítica o via como um livro de obscenidade, por mostrar uma visão de família que fugia (e muito) da tradicional. O autor falava em masoquismo, sadismo e até mesmo relações incestuosas dentro do núcleo familiar. Talvez o choque da crítica também se desse pela surpresa de que os fundadores desta nação, os “heróis católicos” que desbravaram essas terras e lucraram para a metrópole, na verdade, tinham uma dezena de amantes e filhos fora do casamento.
Quando Freyre começa sua análise psicológica, parte de sua credibilidade se esvai. Baseado em conceitos pseudo-científicos tenta, sem sucesso, apresentar as fantasias sexuais de senhores e escravos. Ainda assim, o que ele de fato se bem-sucedeu foi em captar uma estrutura muito mais complexa por trás da família brasileira da época. Centrada nos interesses da acumulação de poder e terras, aquelas estruturas de centralismo da família da Casa-Grande se transfeririam para um espaço urbano. Os sobrados nas grandes cidades, como Salvador e Rio de Janeiro, ao longo do século XIX, reproduziam aquela estrutura de agregados e dependentes até certo ponto. Para Freyre, a partir de 1850 o patriarcalismo familiar[9] começaria a ruir e junto com ele a positividade da mestiçagem brasileira. É por volta da metade daquele século que o capital estrangeiro começa a entrar em ação junto com as migrações em massa de europeus, algo visto com maus olhos pelo sociólogo, que estaria vendo o “ser brasileiro” se esvair.
Em suma, é possível avaliar que a visão de família de Gilberto Freyre inaugurou um debate central para a escrita da história brasileira. Desde “Casa Grande e Senzala”, o autor se tornou a baliza de todo trabalho que falasse sobre o cotidiano do Brasil colonial. Autores como Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade trariam novas contribuições ao tema e acabariam por encontrar soluções menos raciológicas[10] e racistas do que as de Freyre, hoje, superado intelectualmente. Mesmo assim, a “paisagem antropológica” descrita em suas páginas foi tão potente que perdura até os dias de hoje como parte da análise da história da família no Brasil.
[1] Até então os autores das ciências humanas eram formados em Direito ou Economia, a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Os primeiros cursos superiores de ciências humanas só viriam a surgir em 1934 na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFLC) da Universidade de São Paulo.
[2] O termo “democracia racial” nunca foi cunhado por Freyre, mas seu trabalho de fato expressa a ideia de uma conciliação entre a classe senhorial e os escravos, descartando a espoliação de séculos aqui estruturada.
[3] Latifúndio monocultor: Grande propriedade agrícola que produz exclusivamente um gênero. Esse modelo vem desde a colonização e vigora até os dias de hoje. Deixa terras enormes nas mãos de poucos, gerando desigualdade, e empobrece o solo, já que não realiza uma rotação de culturas.
[4] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Global Editora: São Paulo, 2003, p.84.
[5] Nepotismo: favoritismo ou distribuição de cargos públicos para parentes.
[6] Oligarquismo: Prática da Oligarquia, um regime político em que um pequeno grupo de pessoas (de um mesmo partido, estrato social ou família) tem o monopólio do poder.
[7] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Global Editora: São Paulo, 2003, p.98.
[8] Centro do poder burocrático, nessa frase, significa o centro administrador do Brasil, ou seja, a Coroa portuguesa e todas suas ramificações nos territórios ultramarinos.
[9] Patriarcalismo familiar: Organização familiar que tem a figura do pai, e sobretudo a figura do homem, como a mais poderosa. Essa estrutura, como mencionado no texto, se estende para além da família, tomando proporções públicas.
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