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Renato Murad

Entre Doces e Feijoadas: um retrato da alimentação no Brasil Colonial

No princípio, era feijão. E então chegou a farinha, o arroz e a pimenta. Com o passar dos anos se juntou a batidinha de limão e as laranjas pra melhorar a digestão. Se imaginamos que a alimentação brasileira sempre encontrou as perfeitas combinações, os melhores temperos e bebidas, estamos absolutamente enganados. Viver em um país que está sob o controle colonial de outro não é nada belo, em nenhum aspecto da vida, muito menos a alimentação. Éramos mero posto de exploração, uma “vasta empresa comercial” que apresentava um único “sentido”: o lucro português[1].


Antes, contudo, é preciso contextualizar o quão importante a alimentação pode ser para a compreensão do mundo. Existem temas dentro da história que podem ser considerados rápidos, “marolinhas”, se quisermos pensar numa analogia surfista; existem temas medianos, que são capazes de conduzir a prancha pra lá e pra cá; e existem ainda aspectos absolutamente longos e decisivos, que chamamos de longa duração[2]. É nessa última categoria que podemos encaixar a alimentação. Algo que existe desde sempre, já que sem comida a gente morre. Assim, pensar no caminho histórico que as comidas percorreram significa pensar num caminho constante e revelador de aspectos que perpassam economia, desigualdade, cultura, religião, política, e assim por diante.


No caso do Brasil, a alimentação tem papel fundamental na construção da identidade. Quando nos descrevemos para o mundo, num estereótipo descarado, é quase obrigação falar das nossas fartas caipirinhas e de um belo prato de feijoada. Contudo, o caminho que esses alimentos tiveram de percorrer na história colonial brasileira não é nada belo. Se alimentar no Brasil do século XVI e XVII era difícil até mesmo para a classe mais abastada. O influente Frei Vicente Salvador conta da vinda de Francisco de Vitória, então bispo de Tucumán, à Bahia: “mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer e nada lhe traziam, porque não se achava na praça nem no açougue”[3]. Até uma autoridade eclesiástica daquela importância não tinha seus interesses alimentares atendidos, que dirá a classe de africanos escravizados que muitas vezes adoecia por uma dieta pautada por farinha de mandioca e água.


As casas mais abastadas viam produtos como queijos e geléias europeias chegarem ao país completamente podres, por conta de um transporte dificultoso e uma umidade e temperatura absolutamente insalubres nos navios. Não existia diversidade nas frutas e legumes. A policultura era algo praticamente inexistente. Quando se observava o horizonte produtor dos maiores centros brasileiros daquele período só se via uma coisa: cana, cana e mais cana. A grande propriedade monocultora e com o uso de mão de obra escrava era a tônica econômica e cultural. Tudo girava em torno do lucro do açúcar, sobrando espaço mais do que reduzido, nas propriedades, para a produção de alimentos de subsistência. Com o passar do tempo, os administradores da colônia passaram a exigir que se plantasse mandioca nas propriedades monocultoras; no início do século XVIII há relatos de uma “extraordinária falta de farinhas”[4].


Através da alimentação brasileira do período, é possível encontrar as claras desigualdades de tratamento seja no âmbito do senhor para com o escravo ou da metrópole para com a colônia. Era, em primeiro lugar, um espaço à serviço do acúmulo de capital. Dessa maneira, quando o caribe começou a produzir cana a um preço mais vantajoso e as monoculturas brasileiras entraram em crise, buscou-se algo novo no panorama alimentar. Foi nesse momento que as policulturas começaram a ficar mais comuns. Em um passeio pela região das Minas Gerais, já nos anos 1700, era possível encontrar alguns pontos de culturas mistas com a presença de gêneros como o milho. Além disso, a pecuária foi ganhando cada vez mais destaque, ocupando as terras que um dia haviam sido da produção açucareira.


É justamente nesse século XVIII que as culturas alimentares se assentaram, revelando a pobreza dos séculos anteriores. A feijoada: um catado de elementos de diversas origens. Uma comida que aproveitava os restos do porco bem como de outros alimentos dispensados pela Casa Grande, é mais um sinal cultural da adaptabilidade e insalubridade dos subalternos no Brasil. Os doces: compotas, cocadas, bolos e quindins são marcados pelo excesso de açúcar, elemento absolutamente constante nessa alimentação que tinha, de alguma forma, que incorporar o gênero mais cultivado nessas terras por dois séculos, a cana-de-açúcar.


A culinária brasileira é, hoje, um resultado consolidado de experiências de ausência e presença. Aproveita-se o que tem à mão, desconstruindo as culturas alimentares das matrizes indígena, africana, europeia e asiática. Esta última pode causar certa estranheza, mas é preciso pensar que em meio ao mundo moderno de trocas constantes, a Ásia era rota fundamental para Portugal, trazendo de lá a cebola e a pimenta, por exemplo, dois elementos indispensáveis na alimentação brasileira.


Hoje, não é como se os problemas de fome e desequilíbrio alimentar ligados a uma questão de classe estivessem superados. Não estão. Mas é justamente através de uma análise histórica de um elemento de longa duração como a alimentação, que podemos enxergar as origens dessa desigualdade no prato brasileiro. Em “Geografia da Fome” (1957), o pernambucano Josué de Castro faz um dos estudos mais complexos neste sentido, apresentando um dilema brasileiro contemporâneo: “o pão ou o aço”? O que seria mais importante, desenvolver-se economicamente ou garantir uma população alimentada? Essencialmente, a questão do autor é a mesma que identificamos no Brasil colonial, que tinha em seu dilema outras palavras com o mesmo conteúdo: a cana ou a farinha? A resposta portuguesa, à época, foi a cana. A resposta brasileira hoje, segue deixando a população à mercê dos interesses macroeconômicos. A fome ao invés do paladar. A ausência de escolha ao invés da culinária.



[1] JÚNIOR, Caio Prado. “Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia”. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004. Caio Prado usa a ideia de “sentido da colonização” em seu livro para explicar que tudo no Brasil Colonial se resumia a um aspecto: o lucro da Metrópole, Portugal.

[2] ROCHA, Antonio Penalves. F. Braudel: tempo histórico e civilização material. Um Ensaio bibliográfico. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 3, n. 1, p. 239-249, 1995.

[3] FREYRE, Gilberto. “Casa Grande e Senzala”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora/INL-MEC, 1980, p. 39.

[4] Idem, p. 37.


Referências Bibliográficas

DE CASTRO, Josue. Geografia da fome. Editôra Brasiliense, 1957.

FREYRE, Gilberto. “Casa Grande e Senzala”. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora/INL-MEC, 1980.

JÚNIOR, Caio Prado. “Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia”. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004.

ROCHA, Antonio Penalves. F. Braudel: tempo histórico e civilização material. Um Ensaio bibliográfico. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 3, n. 1, p. 239-249, 1995.



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