Muito se tem discutido a respeito das relações familiares e de qual forma elas têm sido impactadas em tempos de pandemia nas cidades. Muitas relações efetivamente se fortaleceram, e tantas outras acabaram por se desgastar após meses em que pessoas (por vezes) tão diferentes tiveram de dividir o mesmo teto quase que ininterruptamente ao longo de tanto tempo.
Relações igualmente relevantes de se estudar e de entender são aquelas estabelecidas por inúmeras famílias nos campos brasileiros com o objetivo de praticar a agricultura. O presente artigo buscará compreender um pouco melhor essa realidade.
Inicialmente, é importante esclarecer que a agricultura familiar é uma forma de cultivo de terra administrada por uma família, a qual usa seus integrantes como trabalhadores e, geralmente, cultiva para fins de subsistência [1] e/ou para distribuição no mercado interno brasileiro.
Diferentemente de outras formas de agricultura, a gestão da propriedade na agricultura familiar é compartilhada pela família e os alimentos produzidos nela constituem sua principal fonte de renda. Cerca de 4,4 milhões de famílias brasileiras são consideradas como produtoras nesse sistema, o qual é responsável por gerar renda para 70% dos brasileiros no campo, segundo informações do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Outro dado interessante a respeito da agricultura familiar fica por conta da Organização das Nações Unidas (ONU), que já indicou que cerca de 80% de toda a comida do planeta chega na mesa das pessoas por esse tipo de produção [2].
Há que se considerar o papel dos alimentos produzidos por essas famílias, distribuídos para as cidades brasileiras. Nas culturas permanentes – isto é, aquelas que se mantêm ao longo do ano –, a agricultura familiar equivale a 48% do valor da produção de café e banana. No caso das culturas temporárias – aquelas que dependem de certos períodos do ano (além de fatores como o clima, tempo, chuvas) para ocorrer – são responsáveis por 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão. A agricultura familiar representa cerca de 77% dos estabelecimentos agrícolas do Brasil. Referidos estabelecimentos, porém, ocupam uma área equivalente a apenas 23% da área agrícola total do país. Trata-se de um percentual baixo em comparação às áreas produtoras de commodities [3] agrícolas de exportação, como é o caso da soja [4], e esse percentual tende a diminuir nos próximos anos, conforme será explicado adiante.
Por mais que parte substancial dos alimentos que chegam na mesa dos brasileiros seja produzida por essas famílias, estas têm acesso a apenas 14% de todo o financiamento disponível para agricultura. Além disso, segundo dados do Censo Agropecuário de 2017, houve uma redução de 9,5% no número de estabelecimentos classificados como de agricultura familiar em relação ao Censo de 2006, sendo o único segmento a perder mão de obra. Enquanto na agricultura não familiar houve a criação de 702 mil postos de trabalho, a agricultura familiar perdeu um contingente de 2,2 milhões de trabalhadores [5].
No Brasil, 63 milhões de hectares de terra são destinados à agropecuária, com o agronegócio ocupando cerca de 61,6 milhões de hectares, conforme levantamento realizado pela Embrapa e o censo agrícola de 2017. Trata-se, assim, de parte considerável do território brasileiro destinada ao agronegócio, o que acaba por incentivar investimentos estrangeiros no país e, consequentemente, aumentar a busca pela terra e o seu valor, seja ele econômico ou político.
Com relação ao valor político e econômico da terra no Brasil, importa salientar que se trata de questão que ocasiona a maior parte dos conflitos no meio rural do país, uma vez que demarcações de terras indígenas e quilombolas e zonas de proteção ambiental se colocam como uma barreira à busca incessante pelo lucro de fazendeiros que se encontram representados no Congresso Nacional. Referidos fazendeiros geralmente mantem - e, muitas vezes, ampliam - com latifúndios conquistados por seus antepassados mediante o assassinato e a intimidação de povos indígenas e de pequenos proprietários rurais. Utilizam-se de sua influência em Brasília para impor o medo e demonstrar poder em relação a rivais e ao povo local, que quase nunca encontra apoio de autoridades de Estado. Assim, historicamente, os grandes fazendeiros se tornaram os grandes chefes da política em suas respectivas regiões, decidindo os rumos da vida local.
Outro fator que deve ser considerado é que a produção agrícola de larga escala no Brasil – voltada para a exportação, marcada essencialmente por grandes terras e pela monocultura – sempre recebeu forte apoio da classe política, que busca corresponder em Brasília aos interesses dos grandes empresários do setor.
Como dito, a busca dos grandes empresários rurais pelo lucro contrasta com os interesses do povo brasileiro em geral, uma vez que suas grandes terras produzem quase sempre para exportação - ou seja, os produtos não são comercializados no Brasil para alimentar o povo - e a manutenção de suas terras depende do desmatamento de grandes áreas verdes - contribuindo para a devastação da fauna e da flora brasileiras.
A maior diferença entre o agricultor familiar e o agronegócio é que o pequeno produtor depende da terra para sua sobrevivência. Outros fatores que são próprios da atividade dos agricultores familiares são (i) a necessidade de um espaço menor para as produções agrícolas; (ii) menor utilização de tecnologia, principalmente para as irrigações; (iii) fortalecimento dos vegetais, fornecendo maiores nutrientes ao solo; (iv) maior variedade de culturas; (v) combate natural e sustentável de pragas e doenças, ou seja, sem o uso de fertilizantes e agrotóxicos; (vi) proteção da fauna, flora e rios, por não realizar desmatamentos; (vii) promoção de descanso ao solo ao dar preferência a rotação de culturas. Em outras palavras, essas características da agricultura familiar valorizam a natureza e permitem que o solo se mantenha de forma mais saudável [6]. Trata-se de grande contraste com o que ocorre no agronegócio em geral, que, por depender de grandes áreas e produzir um tipo único de produto em larga escala, leva rapidamente ao esgotamento dos nutrientes do solo, pois não há tempo suficiente para a sua recuperação.
O crescimento significativo da força política dos grandes empresários agrícolas do Brasil tem ampliado as tensões no campo no século XXI e escancarado a falta de tratamento adequado do governo para com o agricultor familiar. Conforme demonstrado, o incentivo estatal para a agricultura é, em sua parte mais considerável, destinado aos grandes empresários do setor, sendo que há pouco crédito destinado às famílias que atuam no campo. Essas tensões têm ocasionado a diminuição do espaço de produção dessas famílias, o que, diretamente, impacta na biodiversidade nacional e na vida de povos indígenas e quilombolas, uma vez que estes ficam cada vez mais expostos à “força do agro”.
Em resumo, conforme se buscou demonstrar aqui, a atividade dessas famílias é crucial para garantir que a comida chegue aos brasileiros. Ao contrário do que ocorre com as terras utilizadas para a prática da monocultura [7], a agricultura familiar costuma produzir alimentos variados, com respeito ao solo e ao ecossistema, e é feito por milhares de brasileiras e brasileiros que têm a terra como sua principal fonte de sustento.
Essas famílias, portanto, apesar de todos os pesares – quais sejam: ausência de apoio do governo, pressão dos empresários ruralistas, ausência de tecnologia, de equipamentos adequados, de reconhecimento da grande imprensa e do povo em geral – seguem sendo fundamentais, e suas especificidades devem ser estudadas por profissionais competentes para que possam seguir desempenhando o seu papel com muito mais dignidade nos campos do Brasil.
Afinal, garantir a comida no prato para mais de 200 milhões de brasileiros não é pouca coisa.
[1] A agricultura de subsistência é um tipo de agricultura que está voltada para a sobrevivência de um grupo e que envolve o trabalho de pequenos produtores em lavouras. Disponível em:< https://www.todamateria.com.br/agricultura-de-subsistencia/>. Último acesso em 05/09/2021.
[2] Disponível em:< https://agroemdia.com.br/2018/01/05/agricultura-familiar-produz-80-da-comida-do-mundo-diz-fao/>. Último acesso em 05/09/2021.
[3] As commodities são produtos elaborados em larga escala e que funcionam como matéria-prima, possuem qualidade e características uniformes. Ou seja, não se diferenciam de local para local, nem de produtor para produtor. São exemplos as agrícolas (trigo, milho, açúcar), óleo e minerais (minério de ferro, petróleo, gás natural, metais (ouro, prata alumínio). Os preços das commodities são determinados pelas leis da oferta e da demanda no mercado internacional. Disponível em:< https://blog.toroinvestimentos.com.br/commodities-o-que-sao>. Último acesso em 05/09/2021
[4] Disponível em:< https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/2012-agencia-de-noticias/noticias/25786-em-11-anos-agricultura-familiar-perde-9-5-dos-estabelecimentos-e-2-2-milhoes-de-postos-de-trabalho.html>. Último acesso em 05/09/2021.
[5] Disponível em:< https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/2012-agencia-de-noticias/noticias/25786-em-11-anos-agricultura-familiar-perde-9-5-dos-estabelecimentos-e-2-2-milhoes-de-postos-de-trabalho.html>. Último acesso em 05/09/2021.
[6] Disponível em:< https://blog.livup.com.br/qual-a-importancia-da-agricultura-familiar/>. Último acesso em 05/09/2021.
[7] “Monocultura” é um termo utilizado para se referir ao plantio de uma única espécie vegetal realizado em propriedades rurais de grande extensão exploradas por meio de técnicas de baixa produtividade. A palavra também pode estar associada à criação de uma única espécie de animal. Disponível em:<https://www.ecycle.com.br/monocultura/>. Último acesso em 05/09/2021.
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