A migração, seja ela para outro país ou estado, é permeada por adaptações sociais, habituais e culturais dos sujeitos que a praticam. Talvez possamos dizer que, dentre estas, a alimentação é um dos aspectos mais evidentes quando da mudança de um indivíduo para um novo local e que não se é tão próximo daquilo que este conhece e está acostumado a viver. A comida representa um meio de socialização[1], e, por isso, está além da necessidade que nós, seres humanos, temos de nos nutrir e saciar a fome física. A comida é importante para todos e através dela podemos entender aspectos sociais e particulares do grupo ou do indivíduo que a ingere.
“Ao comer, portanto, o homem constrói regras e sistemas alimentares onde a escolha do que vai ser ingerido não responde somente às necessidades de ordem biológica (à nutrição), mas é impregnada pela cultura.”(DA SILVA, 2002)
Quando, no final do século XIX e início do século XX, os primeiros imigrantes chegaram às lavouras brasileiras, seus costumes alimentares chegaram em suas memórias e bagagens, prontos para serem adaptados à realidade brasileira e para influenciarem, como podiam, os hábitos das regiões nas quais se instalaram. Eles ocuparam diversas partes do Brasil e, mesmo que não tivessem todos os ingredientes e elementos das suas realidades – da pátria natal–, conseguiram adaptar as frutas, legumes e verduras brasileiras ao seus gostos e receitas, transformando, portanto, o que conseguiam encontrar em algo parecido com o que comiam e os lembrava do passado e do familiar.
“O consumo do vinho entre estes imigrantes não deixava de ser também uma forma de amenizar as saudades do vivido, através das sensações gustativas e das emoções a ele ligadas pela lembrança, permitindo desse modo um deslocamento no tempo, para um passado cuja única possibilidade de retorno estava dada pela lembrança (Sayad: 2000).”[1]
Quando Matilda Checcucci Gonçalves da Silva[2] escreve sobre os imigrantes italianos no Brasil, e Tomoo Handa[3], sobre imigrantes japoneses, a transformação e a manutenção dos hábitos alimentares de cada um desses grupos em terras brasileiras chama a atenção. A culinária de tais comunidades não se manteve exatamente a mesma, já que nem todos os fatores, instrumentos e ingredientes podiam ser acessados, mas o nhoque e o mochi (bolinho feito com massa de arroz triturado) se mantiveram no cardápio destes grupos através de sua adaptação à realidade brasileira. Ainda, estes pratos conquistaram, depois de algum tempo, lugar à mesa de brasileiros que não são descendentes de tais imigrantes, tornando-se, assim, parte da alimentação nacional.
Em outras palavras, os imigrantes continuaram a cozinhar comidas que lhes eram familiares, seja através da introdução de alimentos trazidos por eles em suas malas ou pela produção de um dado prato a partir do que encontravam em solo brasileiro. O mochi, por exemplo, passou a ser feito com mandioca ao invés de arroz em algumas regiões, e as videiras (plantas que produzem as uvas), por sua vez, foram introduzidas nos campos brasileiros para a produção de vinho.
“Ao imigrar, o camponês italiano trouxe consigo mudas de plantas que costumavam ser cultivadas nas suas regiões de origem - situadas no norte italiano - e até mesmo espécies animais, como o bicho-da-seda.” (DA SILVA, 2002)
Dessa forma, percebe-se que a manutenção de tais costumes alimentares não é simples para quem migra, e também não é tão simples para a sociedade que recebe os migrantes. Em muitos casos, como no de culinárias étnicas[4], há uma certa resistência em relação à sua aceitação, por estes não serem bem recebidos e/ou entendidos como algo “exótico” ou até “incomível”[5] pela comunidade nativa. Tal pensamento cria barreiras em relação ao estabelecimento de migrantes, pois, como escrito anteriormente, a alimentação vem como forma de socialização e como há de se socializar com pessoas que não reconhecem a sua comida enquanto algo comestível?
Há muito o que se questionar e mudar em relação à alimentação para que se possa entender e aceitar a alimentação não só de imigrantes, mas também de migrantes, ou seja, de brasileiros que mudam para outros estados. A comida “exótica” só é entendida assim por quem não a conhece, pois, para quem cresceu comendo-a, ela é típica, cotidiana. Dessa forma, a partir dessa visão deve-se considerar a relatividade do entendimento da natureza de um alimento, para que não se agrida algo tão pessoal e quase que intrínseco à um indivíduo: sua alimentação, por ela estar permeada de afetos, memórias, costumes e saudades que acompanham os migrantes onde quer que estejam.
[1] - Sayad, 2000 apud DA SILVA, Matilda Checcucci Gonçalves. A alimentação e a culinária da imigração italiana. Revista Travessia, jan- abril 2002
[2] DA SILVA, Matilda Checcucci Gonçalves. A alimentação e a culinária da imigração italiana. Revista Travessia, jan- abril 2002
[3] HANDA, Tomoo. O imigrante japonês. 1987
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