Dia 9 de Novembro de 2022, dia da morte de Gal Costa. Para a surpresa geral dos interessados na música brasileira, ela se foi antes de Caetano, Milton, Gil e Bethânia (ainda que tivesse a mesma idade ou fosse até anos mais nova que esses artistas de seu tempo), deixando uma memória vívida de seus shows mais recentes em que, sem nenhum esforço, arrancava as mesmas notas agudas e afinadas que fizeram parte de sua característica musical ao longo dos anos.
Põe-se, então, a mídia a vasculhar todas as composições, parcerias, entrevistas, áudios, vídeos, notas de rodapé, enfim, tudo o que pudesse render um bom clipe compilado no Fantástico. Parece ser um movimento natural o de procurar o artista depois da morte, seja em sinal de lembrança, seja porque o nome do falecido passa a estar corrente na mídia. Em meio a tais memórias da carreira de Gal surge uma canção gravada para o disco Fantasia, de 1981. O amor foi composta por Caetano Veloso e Ney Costa Santos, baseados no epílogo de uma obra de Vladimir Maiakóvski: Sobre isto.
O livro do poeta russo foi escrito entre 1922 e 1923 no intervalo de alguns meses, isolado em seu apartamento em Moscou. O que motivou sua escrita foi uma discussão de relacionamento que tivera com sua companheira Lília Brik. Entre dezembro de um ano e fevereiro do outro, Maiakóvski ficou em voto de silêncio com Lília, a fim de refletir melhor sobre suas questões enquanto casal. O centro da discussão, ao que indicam as biografias, era o fato de que ele sentia um forte ciúme, já que ela defendia um estilo de vida muito mais livre e revolucionário.
Agora um parêntese a respeito de Lília Brik. Para muitos, ela é o símbolo da ascendente figura da mulher no novo contexto soviético. Picasso teria afirmado que ela era a “musa da vanguarda russa”. Lília ficou conhecida por produzir dois filmes, Os judeus e a Terra e Olho de vidro, e por integrar uma casta da intelectualidade soviética que a elegeria como “a cara” da propaganda revolucionária. O designer Aleksandr Rodchenko escolheu uma foto sua para ilustrar um cartaz da Imprensa Estatal de Leningrado, que reforçava o mérito do governo no acesso à cultura. A figura se tornou a mais famosa fotomontagem da primeira metade do século XX e ecoou como referência estética por muitos e muitos anos.
No cartaz, Lília aparece gritando “livros!”. Fonte: Wikipedia
O debate sobre os costumes nos primeiros anos de União Soviética são bastante acalorados já que, no início, o casamento foi abolido enquanto obrigação jurídica, e a família, considerada uma instituição burguesa, passou a entrar em decadência. O aborto foi legalizado em 1920 e as mulheres, que trabalhavam em serviços domésticos não-remunerados, gradualmente tiveram essas tarefas trasnsferidas para lavanderias, creches e refeitórios comunitários. Dessa forma, quando Maiakóvski coloca no papel as suas questões com Lília, também está tratando de um debate sobre amor e revolução, um evento que permeia a sociedade em que vive.
Muitos o acusaram de individualista quando decidiu falar “Sobre isto…”, algo tão perigoso que não pode ser nomeado. No fragmento que abre o livro ele diz: “É um tema ardiloso!/Mergulha sob os fatos,/no imo [1] dos instintos preparando-se para o salto/e furioso/ atreveram-se a esquecê-lo!/tremula;/cairão as almas das peles.”. No entanto, o que o autor apresenta é que é justamente através do amor que se podem traduzir os anseios revolucionários de um povo que questiona a ordem burguesa de relacionar-se. No epílogo que deu origem à canção entoada por Gal, a ideia ganha volume com o trecho: "Ressuscite-me/ quero viver a vida até o final!/ Para que o amor não seja escravo/ do casamento, /luxúria, / pão”. Chama atenção que a palavra “amor” só é de fato mencionada em Sobre isto, no tal epílogo, como numa tentativa de questionar o tabu por trás da temática que era esnobada na época como algo banal, frívolo e sem interesse para um universo em transformação como o da União Soviética.
Não foi uma decisão casual Gal Costa cantar O amor. O grito de liberdade se expande em meio à construção da artista, seja em suas roupas, seja na escolha de seu repertório, nas suas entrevistas, enfim, ela manifesta em sua corporeidade e sua voz muito daquilo que Maiakóvski colocava em palavras. Seria, porém, injustiça colocar Gal ao lado do poeta russo, que estava muito mais num conflito com a não-monogamia e o amor libertário. Gal deve ser comparada historicamente com Lília, o rosto revolucionário da cultura soviética, assim como a brasileira foi a representação imagética da Tropicália [2], incluindo suas capas censuradas (como foi o caso de “Índia”, de 1973) e a posição de liderança que assumiu dentro do grupo.
Gal é fatal porque Gal é revolução. Gal é profana, é força estranha que redefine o texto. Gal revive Maiakóvski porque quer cantar a potência de Lília, porque quer um mundo novo, em que o pai seja “pelo menos universo, e a mãe no mínimo a terra”. É a redefinição do conceito de família e a manifestação da rebeldia brasileira em meio a um período em que a cantora viu amigos sumirem e se exilarem por força do governo perseguidor da Ditadura Militar.
Notas:
[1] Imo: Inferior, ínfimo, o mais baixo.
[2] Tropicália: Movimento cultural que se desenvolveu no Brasil entre os anos 1960 e 1970 que buscava encontrar uma identidade nacional. Floresceu especialmente no campo da música, que misturava elementos de ritmos tradicionais (como baião e caipira) com as guitarras elétricas do rock.
REFERÊNCIAS
O AMOR. Intérprete: Gal Costa. Compositores: Caetano Emmanuel Viana Teles Veloso e Ney Costa Santos Filho. In: FANTASIA. Intérprete: Gal Costa. [S. l.]: Polygram/Philips, 1981. 1 disco vinil, lado A, faixa 5 (3 min)
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