O Código Penal Brasileiro, por meio de seus artigos, promove a criminalização de mulheres com base em preceitos patriarcais, historicamente forjados sob uma ótica machista e moralista, que classificam as mulheres de acordo com o exercício de sua autodeterminação sexual. Os principais preceitos que norteiam a produção legislativa, sob perspectiva patriarcal conservadora, classificam as mulheres, objetivando controlar os corpos femininos, bem como a expressão de sua sexualidade, na esfera pública social.
O Direito Penal se consolida como um produto da estrutura patriarcal, e, desta maneira, se apresenta como instrumento de sua manutenção, não deixando de reproduzi-la. Portanto, ao longo da estruturação e do desenvolvimento da legislação penal, as mulheres foram postas como um objeto invisível e a preocupação por elas apenas emergiu no sentido de classificá-las conforme sua conduta sexual perante a sociedade. De forma geral, sem o intuito de esgotar os termos utilizados para se referir às mulheres, destacam-se as categorias de “mulher honesta” e “mulher prostituta”.
Fonte:https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/383866201/mulher-honesta-conheca-a-origem-da-expressao
O comportamento sexual é tido como chave para análise dessa categorização. As mulheres tidas como honestas eram aquelas virgens e recatadas, casadas e submetidas ao poder do marido ou ainda, viúvas castas. A proteção da mulher honesta pelo Direito Penal se dava, sobretudo, em circunstâncias de crimes sexuais, como o estupro. No entanto, isto não com a intenção de garantir a integridade das mulheres, e sim de proteger a instituição familiar e a moral. Por outro lado, as mulheres prostitutas ou públicas, por serem desonradas e excluídas no âmbito social, eram criminalizadas abertamente pelo Direito Penal, o qual as transportava da figura de vítimas para o papel de provocadoras e, assim, as considerava culpadas pelos crimes sexuais cometidos contra elas, diante da percepção de que o corpo da mulher é espaço público.
Prostitutas retratadas por Toulouse Lautrec, na tela Au Salon de la rue des Moulins (1894). Fonte: https://rainhastragicas.com/2018/01/28/a-rainha-do-lar-e-a-mulher-da-vida-a-construcao-das-imagens-femininas-no-seculo-xix/
Apesar desta categorização maniqueísta[1] da mulher ter sido excluída do texto legal, as concepções de “mulher honesta” e “mulher prostituta” subsistem no âmbito jurídico e social. Como exemplo de tal criminalização, destaca-se o artigo 134[2] do Código Penal, que tipifica o crime de abandonar ou expor recém-nascido para ocultar desonra própria. Esse artigo objetiva proteger a vida e a saúde do recém-nascido em situação de risco resultante de seu abandono. Majoritariamente, compreende-se que o sujeito ativo do delito[3] somente pode ser a mulher “honrada” vítima de exclusão e degradação social pela verificação de uma gravidez resultante de relação tida como imoral, entendendo-se que a mulher “decaída” no conceito público não pode cometer o crime, haja vista que todos conhecem sua desonra.
O termo “desonra própria” trazido pelo artigo vincula-se, necessariamente, às circunstâncias ligadas a relações de cunho sexual. Desta forma, a aplicabilidade do delito às mulheres prevalece em decorrência de julgamento moral que recai em maior grau sobre a figura feminina. Socialmente, as mulheres são mais censuradas pelo exercício de sua sexualidade, sobretudo, quando envolvidas em relações moralmente reprováveis. Notoriamente, essa postura social de censura, que permeia as estruturas da sociedade, inclusive o meio jurídico, está fortemente submetida a compreensões machistas acerca da figura feminina.
Observa-se que, de acordo com essa interpretação, o aplicador do direito, quando a ré for mulher, deverá desenvolver exercício cognitivo de classificar abstratamente a acusada, conforme as convicções morais predominantes no cenário social, como honesta ou prostituta, com a finalidade de averiguar a procedência de aplicação do artigo ao caso concreto. Explicitamente, a condenação da mulher por delitos como esse estará submetida a juízo de caráter subjetivo acerca de sua situação sexual.
A criminalização das mulheres através desses conceitos nos remete às tenebrosas classificações de Lombroso[4], que vinculavam a mulher honesta aos crimes mais brandos e ocasionais, resultantes de casos de desonra, do estado puerperal ou do crime culposo. A matéria destes crimes, para Lombroso, se associava, normalmente, ao filho fruto de desonra, aos sentimentos, como os ciúmes, ao estado de loucura e ao descontrole emocional “próprio” da natureza feminina.
Enquanto a mulher prostituta era tida como naturalmente criminosa, considerava-se que sofria de patologias ligadas ao seu sistema reprodutor que a distanciaram da maternidade e de seu papel de esposa. Esse discurso moral sobre a sexualidade feminina ainda pauta a criminalização das mulheres hoje em dia. As mulheres que não exercem adequadamente as funções reprodutivas e maternais, determinadas pelo patriarcado, mesmo que eventualmente – como no caso da mulher honesta – são criminalizadas.
Fotografia de Gabrielle Bompard, 1889. Gabrielle Bompard foi acusada por assassinato em 1889, sendo utilizada como exemplo de mulher criminosa por Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero. Em sua obra, os estudiosos a descrevem como criminosa nata em decorrência de suas características físicas e psicológicas, como lascívia e histeria. Fonte: http://antoniofontoura.com.br/site/2017/10/23/gabrielle-bompard-e-a-mulher-delinquente/
Sob essa perspectiva, fica evidente que para o Direito Penal é importante tratar da mulher criminosa não porque praticou um crime, mas por ter escapado do controle social imposto na esfera privada pela família, justificando, assim, a intervenção do Estado. A tipificação do artigo 134 reforça estereótipos patriarcais acerca da função social da mulher: esposa e mãe. Muito melhor seria se este artigo específico fosse completamente excluído do código, uma vez que é incompatível com os valores éticos e sociais de nosso ordenamento, principalmente, a igualdade e não discriminação.
Fonte https://qgfeminista.org/o-que-e-o-patriarcado/
As mulheres são vítimas de violência do próprio Direito Penal. O artigo analisado reforça o discurso patriarcal de submissão social e moral das mulheres, buscando operar como instrumento de controle institucional sobre o exercício da sexualidade feminina. As construções legais objetivam a manutenção desse controle penal sobre as mulheres, preservando as figuras da mulher honesta e da mulher prostituta para a proteção da estrutura patriarcal.
Nestes termos, se analisa que o sistema penal deveria adotar as diretrizes do discurso feminista, para não correr o risco de considerar a Constituição Federal apenas como um acessório jurídico, violando, abertamente, os seus fundamentos. Assim, entende-se que a exclusão dos crimes considerados tipicamente femininos, pautados em preceitos que analisam o comportamento sexual, precisa ser realizada o quanto antes.
Notas
[1] Maniqueísta: concepção que revela dualidade entre o bem e mal, mediante princípios opostos.
[2] Art. 134 - Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria: Pena detenção, de seis meses a dois anos. § 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena detenção, de um a três anos. § 2º - Se resulta a morte: Pena detenção, de dois a seis anos.
[3] Sujeito ativo do delito é o indivíduo que comete o crime.
[4] Cesare Lombroso foi um médico psiquiatra e o principal fundador da Escola Positiva, responsável por inaugurar a etapa científica da criminologia no final do século XX. Lombroso desenvolveu a teoria do homem delinquente, buscando vincular as características físicas e psicológicas à criminalidade.
Referências Bibliográficas
ANGOTTI, Bruna. Entre as Leis da Ciência, do Estado e de Deus: o surgimento dos presídios femininos no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2012. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde11062012145419/publico/2011_BrunaSoaresAngottiBatistaDeAndrade_VOrig.pdf.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial (arts. 121 a 154-B) – crimes contra a pessoa. Volume 02. Ed. 20. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MARTINS, Simone. A mulher junto às criminologias: de degenerada à vítima, sempre sob controle sociopenal. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 21, n. 01. Janeiro 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-02922009000100009&script=sci_arttext.
SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal – parte especial. Volume 02. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
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