Desde a redemocratização, o Brasil adota políticas neoliberais para a economia, algo que tem um reflexo e apelo nos discursos difundidos por grupos sociais, em especial os mais à direita ou mais conservadores. Isso está, principalmente, na defesa da “meritocracia”, mas também podemos ver esses reflexos na ideia de que o setor privado é sempre a melhor e mais rápida alternativa em comparação ao setor público. Por exemplo, quem já não ouviu que o SUS é lento e ineficiente enquanto que o plano de saúde privado é melhor? O governo deveria sair do caminho e permitir que o setor privado assuma a economia, ou assim dizem os defensores desses discursos. Afinal de contas, o povo tem de trabalhar, o país não pode parar, etc etc etc. No entanto, é no mínimo curioso ver que basta uma crise apenas para escancarar o fracasso dessas medidas, e não me refiro à pandemia (apesar dela piorar tudo ainda mais).
Pegando como cobaia a expressão máxima do neoliberalismo atual, a chamada “uberização”, fica mais simples de ver como essas ideias de que só trabalho árduo leva ao sucesso e da meritocracia caem por terra. Liderado pela Uber, era um novo modelo de trabalho, com o motorista “sendo seu próprio patrão”, fazendo suas próprias horas, com regime flexível. Porém, crises como o aumento desenfreado nos combustíveis de hoje levam 80% dos motoristas de aplicativo que trabalham com carro alugado e 30% dos que têm carro próprio a deixarem de trabalhar para a Uber, como aponta uma matéria recente da CartaCapital[1]. Ou seja, é uma situação tão frágil que fica ao sabor do mercado, uma coisa perigosa em tempos de desemprego alarmante no país[2], isso sem falar nos desalentados e outras subutilizações da força de trabalho como apontado pelo IBGE[3].
Conforme a mesma matéria da Carta, os próprios motoristas (ou ex-motoristas) dizem que “a conta não fecha”, que o quanto eles ganham trabalhando 12 horas com a Uber não paga sequer a gasolina. Não é de hoje que a Uber – assim como outros serviços de aplicativo como a iFood e a Rapi (conforme apontado em dois programas do Greg News, “Gorgetismo” [4] e “Delivery” [5], e vários outros veículos) – vem pagando cada vez menos para que seus empregados (que eles insistem em não chamar de empregados) trabalhem cada vez mais. Trabalhadores de delivery desses aplicativos não ganhavam em média sequer um salário mínimo em 2019[6] (segundo a Aliança Bike, a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas).
Chegamos então a um questionamento: como que uma pessoa trabalhando 12 horas por dia não “merece” ganhar sequer um salário mínimo ou pagar o combustível do veículo que usa para trabalhar (não é lazer, é trabalho)?
Há um certo prazer sádico na ideia da meritocracia, um pouco da síndrome de Maria Antonieta (que apesar de levar a fama, jamais disse a infame frase). Ora, “se não tem pão, que trabalhem para comprar!”. Porém, considerando a pergunta acima, fica no mínimo difícil sustentar essa ideia. Quer dizer, os mais alinhados com o pensamento neoliberal ainda tentam, justificando que basta procurarem outro emprego, “se virarem”, “que comam brioches!”. Entretanto, em uma economia como a de agora, com tanto emprego em falta (como já apontado anteriormente), não tem onde procurar. Querer que esses milhões de desempregados inovem quando eles não têm nem dinheiro para comer é, novamente, puro sadismo.
Mas não é esse o único ponto que defende o neoliberalismo e que “pegou” no discurso popular. A ideia de que o Estado é sempre ineficiente, de que o que é público é sempre pior do que o privado, é uma das ideias neoliberais propagadas ad nauseum (até a náusea). O SUS foi citado anteriormente, então nada melhor que ele seja a cobaia desta vez, isto é, ele e todos os planos de saúde privados.
O SUS é reconhecido mundialmente como um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, além de ser referência mundial em imunização, segundo a Fiocruz em um vídeo de 2019[7], além de várias outras conquistas[8] como o cuidado com pacientes com HIV. Tem estrutura para um atendimento horizontal (isto é, ao longo do tempo, acompanhando o paciente em todas as suas facetas) nos mais de 5.500 municípios do país para os 200 milhões de brasileiros[9].
No entanto, falar que o SUS é sucateado, que demora, que é um serviço ruim, é muito comum nas conversas (em especial, da classe média para cima). Não há como negar que há problemas nessa rede, porém o quão melhor é o setor privado? O que se vê dos planos privados comandando a saúde pode ser até pior que o SUS. Basta olhar os Estados Unidos, maior bastião (ou uma das maiores vítimas) do neoliberalismo, para ter uma prova: como já apontava Michael Moore em 2007 no documentário “SOS Saúde” (e que ainda se mostra verdadeiro nos vários programas de John Oliver “LastWeekTonight[10], infelizmente sem legendas em português), ainda tem muito americano sem cobertura nenhuma ou que o plano não cobre coisas básicas, como a diabetes, por ser uma “condição já pré-existente”. Entre um programa público lento e um tanto sucateado, mas que atende a todos, e um de ponta, mas que só atende quem tem dinheiro, a escolha de um governo deveria ser para o que atende a mais gente.
Isso sem falar na perda da horizontalidade que existe no setor privado. Com um plano de saúde, se a pessoa tem dor de cabeça, vai em um neurologista; se tem dor no peito, cardiologista; dor de barriga, gastrologista e por aí vai. Isso por conta da facilidade de procurar o nome e especialidade do médico em uma lista. Entretanto, entre 80 e 85% das questões de saúde poderiam ser resolvidas em um posto de saúde[11] com um médico de família e comunidade. Isso sem falar que, caso seja algo mais grave, não só o posto encaminhará o paciente para o profissional adequado, mas também fará o acompanhamento depois da consulta com especialista. Que plano de saúde privado faz isso? Que há problemas no SUS, com certeza, mas há mais virtudes do que vícios. Há mais coisas entre o céu e o SUS do que sonha vosso vão neoliberalismo.
Um outro mito neoliberal, ainda pautado no anterior, é o de que privatizar instituições públicas é sempre bom e sempre vai gerar mais lucros e vantagens. Supostamente, a administração pública é “ineficiente”. Entretanto, essa “eficiência” que pregam os defensores desse discurso é o lucro. O papel de uma instituição pública não é gerar lucro, é proteger reservas nacionais e prezar pelo interesse do povo, logo essa pressuposta “ineficiência” nada mais é do que ter outros interesses que não agradar ao mercado. Além disso, basta apenas lembrar que desde a privatização, a Vale já teve dois desastres ambientais, Brumadinho[12] e Mariana[13]. Como pode uma empresa privatizada ser “melhor” com esses dois desastres (e a ineficiência em lidar com eles) nas costas?
Um último ponto do discurso neoliberal, advindo de todos esses já listados, é que temos de “enxugar as contas públicas”, com reformas trabalhistas ou congelamento dos gastos. Como pode ser a solução para os problemas apontados tirar direitos do trabalhador (a ponto de não haver nem FGTS, férias ou 13º salário em alguns casos[14]) e deixar tantos desempregados tão desesperados que trabalhariam por qualquer trocado? Como pode ser a solução para a saúde congelar o custo por vinte anos[15] sem considerar quaisquer mudanças no cenário do país (como, por exemplo, uma pandemia)? Há quem diga, por exemplo, que as leis trabalhistas são “rígidas” e ultrapassadas[16] Também há aqueles que se valem de ironias e piadas de mal gosto contra o SUS (e a vacinação)[17]. Porém, retornar a ter o patrão como senhor absoluto dos preços (como era no século retrasado), além de ter um anti-sistema de saúde tal qual o dos EUA, não parecem ser soluções que gerem bem estar à maior parte da população. Correndo o risco de expressar opinião ainda mais abertamente do que antes, má gestão de verbas públicas não se resolve cortando gastos com a vida ou passando a conta para os mais vulneráveis.
Mas no fundo, o discurso neoliberal, que “colou” aqui com a “meritocracia” e o “sucateamento público” é: um discurso que defende o interesse de patrões e empresários em explorar ao máximo possível sem nenhuma repercussão, todos os lucros e todas as proteções. É um discurso que Noam Chomsky (pensador político americano) vai chamar de “anti-política” (como mostrado neste vídeo de suas palestras[18], infelizmente sem legendas em português): os senhores do setor privado defendendo e propagando o discurso de que todos os problemas vem do Estado, não deles. Para eles, o Estado, a grande instituição com potencial democrático, é a maior ameaça, pois pode pôr fim aos ditames autoritários das empresas. Afinal de contas, o espaço de trabalho não é um espaço democrático e dificilmente será um dia. Se o senhor dono da empresa quer lucrar poluindo o mundo e explorando os trabalhadores, por mais que estes lutem, é uma luta desigual e desbalanceada. Mas se há um Estado democrático que represente esses trabalhadores, a situação muda completamente. Daí o interesse de empresários e membros desta classe em fazer o Estado parecer vilão, não eles, os verdadeiros culpados.
[1] https://www.cartacapital.com.br/economia/alta-nos-combustiveis-afasta-motoristas-e-expoe-o-fracasso-da-uberizacao/
[2] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/08/31/desemprego-fica-em-141percent-no-2o-trimestre-diz-ibge.ghtml
[3] https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php
[4] https://www.youtube.com/watch?v=-2sfnp0npnI
[5] https://www.youtube.com/watch?v=v3B9w6wWNQA
[6] https://aliancabike.org.br/wp-content/uploads/2020/04/relatorio_s2.pdf
[7] https://portal.fiocruz.br/en/node/74687
[8] https://pensesus.fiocruz.br/conquistas-e-desafios
[9] https://www.scielo.br/j/csc/a/7BM4FYp7dWJzyb7wzktwhJH/?lang=pt
[10] https://www.youtube.com/user/LastWeekTonight/search?query=health
[11] https://www.conass.org.br/atencao-primaria-e-capaz-de-resolver-85-das-demandas-de-saude/
[12] https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/08/24/apos-mais-de-30-meses-de-buscas-bombeiros-encontram-corpo-em-brumadinho.ghtml
[13] https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/08/27/atingidos-de-mariana-seguem-sem-data-para-receber-casas-6-meses-apos-fim-do-prazo-revolta-e-raiva.ghtml
[14] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/08/22/nova-reforma-trabalhista-fgts-13-ferias.htm
[15] https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/10/politica/1476125574_221053.html
[16] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/08/26/bolsonaro-diz-que-clt-e-rigida-e-defende-flexibilizacao.htm
[17] https://oglobo.globo.com/saude/piada-com-remedio-para-impotencia-ironias-criticas-vacina-uso-de-mascara-como-queiroga-agradou-bolsonaro-em-live-25201534
[18] https://www.youtube.com/watch?v=T_2Ji4PJiTU
Comments