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Giulia Monteiro Milanese

O Antropoceno e Torto Arado: modos de viver na (e com) a Terra

Seja nas escolas, nos ambientes de trabalho, nas manifestações populares ou nas conferências internacionais, é possível identificar um discurso cada vez mais preocupado e voltado às questões ambientais, mas esse não é um fenômeno recente. Entre as décadas de 60 e 70, houve um crescimento significativo das denúncias ligadas aos desastres ambientais, apontando, sobretudo, para os impactos, decorrentes do avanço tecnológico, sobre a saúde da população e preservação do meio ambiente.


Com o agravamento das ações danosas da humanidade sobre a Terra e suas consequências preocupantes, os cientistas P. J. Crutzen e E. F. Stoermer (2000) deram origem ao termo “Antropoceno” para chamar a atenção de que a humanidade teria assumido um papel central nos efeitos globais e nas transformações climáticas em curso no planeta Terra. Apesar de não existir um consenso em torno da origem exata do Antropoceno, a invenção da máquina a vapor marca um período em que foram observadas alterações significativas na composição do meio ambiente, sugerindo que tal início tenha sido impulsionado pela Revolução Industrial. A partir de então, a comunidade científica assume uma posição responsável por alertar sobre as consequências da ação humana não somente para o meio ambiente e para outras espécies, mas, também, para a própria humanidade.


Mesmo com o avanço das pautas ecológicas e do fortalecimento dos discursos ambientalistas, o que se vê circulando nos meios de comunicação são notícias de grandes desastres ambientais atingindo populações inteiras de forma cada vez mais violenta, afetando tanto coletivos humanos quanto não-humanos. Nas redes sociais, somos frequentemente expostos à imagens de enchentes, tornados, avanço do desmatamento e do garimpo ilegal e, de tempos em tempos, aparece alguma notícia sobre a extinção de mais uma espécie animal. Nas salas de cinema e nos livros de ficção, é muito comum encontrar representações da iminente chegada do apocalipse, o anúncio da única certeza que a humanidade conhece: o fim do mundo tal como o conhecemos.


Cabe a pergunta: ao que serve exatamente esta fixação com a narrativa apocalíptica? Seria uma maneira de atingir a consciência das pessoas? Ou seria, então, uma expressão de um certo conformismo diante do que supostamente seria inevitável? De todo modo, existe um personagem central nesta história, a quem o roteiro parece estar subordinado: o ser humano. Mais precisamente, é a humanidade que aparece como protagonista dessa história: tanto quanto autora do desastre que colocaria um fim a sua existência, quanto assumindo o papel de sua própria heroína, valendo-se de seus poderes racionais para reverter o destino ao qual ela mesma teria se condenado.


Diante da incerteza do que está acontecendo e pode acontecer, é compreensível que surjam especulações a respeito de um futuro que se vê ameaçado. De onde viria esta ameaça? Se a humanidade é a grande responsável pelo esgotamento dos recursos ambientais e das formas de vida na Terra, como responsabilizá-la pelos erros cometidos? Seria possível “reciclar” a idéia de progresso tal como o pensamento ocidental a formulou, agora sob novos moldes pautado pelas questões ecológicas? É possível determinar que todos os sujeitos que compartilham um mesmo ambiente exercem igual impacto neste meio?

O romance Torto Arado (2019) do escritor baiano Itamar Vieira Junior, nos convida a refletir – para além de outras questões – sobre as trocas entre humanos e não-humanos, sobre a vida daqueles que vivem da e com a Terra. A história é ambientada no sertão baiano, mais especificamente na fazenda de Água Negra, e tem como protagonistas as irmãs Bibiana (a mais velha) e Belonísia, descendentes de escravizados e filhas de trabalhadores rurais – do curandeiro Zeca Chapéu Grande e de Salustina (“Salu”). O livro é dividido em três partes: “Fio de corte", “Torto arado” e “Rio de sangue’', narrados por Bibiana, Belonísia e a entidade Santa Rita de Passadeira, respectivamente. Quem lê se vê rapidamente totalmente imerso nos pensamentos das narradoras e nas vivências permeadas pelas tradições religiosas afro-brasileiras, pelos laços que constituem a família e a comunidade e pela luta por direito à terra e à emancipação dos trabalhadores rurais. Em diversas passagens do livro, é possível identificar "elos" entre humanos e não-humanos:


[...] Atento ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado. Meu pai não tinha letra, nem matemática, mas conhecia as fases da lua. Sabia que na lua cheia se planta quase tudo; que mandioca, banana e frutas gostam de plantio na lua nova; que na lua minguante não se planta nada, só se faz capina e coivara.


Sabia que para um pé crescer forte tinha que se fazer a limpeza todos os dias, para que não surgisse praga. Precisava apurar ao redor do caule de qualquer planta, fazendo montículos de terra. Precisava aguar da mesma forma, para que crescesse forte. Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração. (p. 100)


O romance nos traz, em forma de narrativa, o universo dos quilombos como um sistema propriamente dito, que opera por meio de forças interdependentes (cultivo, manufaturas, ritos), garantindo o seu funcionamento, indo além do domínio de um vasto conhecimento sobre as técnicas de cultivo e expressando relações de coexistência entre todos os seres que compõem a reprodução da vida e a preservação do meio onde estas relações se dão.


O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa. [...] Está vendo este mundão de terra, aí? O olho cresce. O homem quer mais. Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, não. Você sozinho consegue trabalhar essa tarefa que a gente trabalha? Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra não é nada. (p. 186)


No livro Ideias para o fim do mundo (2020), mais especificamente no capítulo intitulado A humanidade que pensamos ser, Ailton Krenak traz uma importante reflexão em torno do processo de globalização e seus efeitos, que é o que chama de lugar do sonho. Este lugar do sonho ao qual se refere, seria aquele dos reordenamentos das relações e dos espaços com aquilo que se admite ser a natureza (KRENAK, 2020), aquilo que se admite a partir de um determinado entendimento de natureza que se manifesta como um pensamento predominante, mas que não é universal. A cosmovisão[1] indígena, em particular, não entende a natureza separada da humanidade, mas sim, compreende ambas como uma unidade. Segundo o autor, este estado de mundo que vivemos hoje, do homem como medida das coisas, é o que os antepassados recentes encomendaram para nós. Não se trata apenas da materialidade dos efeitos humanos na Terra, mas da criação de conceitos e pensamentos que condicionaram comportamentos e a experiência com e na Terra, associadas à noção de humanidade forjada pelo pensamento ocidental.


Não se trata, porém, de criar novos parâmetros para a existência na Terra, privilegiando certos modos de existência em detrimento de outros ou mesmo de encontrar a grande solução para este grande problema que se coloca diante de nós.Talvez poderíamos ficar com o lugar do sonho (KRENAK, 2020), mesmo que isso signifique a destruição do mundo tal como conhecemos. Acredito que o medo da mudança venha justamente do medo da ruptura, da fragmentação deste mundo que foi criado. Não é tarefa fácil lidar com a ideia do fim, ainda mais quando não se tem ideia de como recomeçar, mas:

“por que tanto medo assim de uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?” (KRENAK, 2019, p. 31).


[1] Modo de ver e entender o mundo a partir de determinadas crenças, valores, impressões, sentimentos, etc.



Referências Bibliográficas

CRUTZEN, P.J.; STOERMER, E.F. O antropoceno. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, sem número, 06 nov. 2015.

KRENAK, Ailton. A humanidade que pensamos ser. Em: Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019: 28-36.

VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. 1a Reimpr. São Paulo: Todavia, 2019.


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