Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos – Ailton Krenak
“Quando se pensa em história, se pensa em escrita!”. Nas origens do estudo da disciplina, essa frase era acreditada como verdade absoluta e desde então se propagou como um mantra na mente daqueles que olham para o passado. A Pré-História, nessa lógica, é tudo o que veio antes da escrita, ou seja, antes da primeira tabuleta feita em escrita cuneiforme dos sumérios, há mais de 5000 anos, na Mesopotâmia.
Tal afirmação, contudo, passou a ser criticada pelos historiadores modernos que, em dado momento, perceberam que a análise dos fragmentos do passado não estão somente na escrita e nos documentos oficiais, mas também no padrão das pinturas de um vaso, nas práticas rituais repetidas e reproduzidas no presente, na contação de histórias, nas fotografias, etc. A análise das imagens (iconografia) e dos relatos (história oral) são dois dos infinitos novos caminhos que se abriram quando se rompeu com a necessidade da escrita para escrever a história. Com esse novo método de fazer história, a “pré-história” segue sendo “pré”? A resposta de muitos historiadores para essa pergunta já é “sim!”, mas ainda não é consensual, especialmente pela exaustão com que a frase que abre esse texto foi reproduzida e consolidada. Ainda assim, já é possível “desenhar” a história de muitas sociedades ignoradas por anos, simplesmente por não haver cultura escrita evidente.
Os povos que ocupavam a América portuguesa antes da invasão europeia dos trópicos no século XVI foram vítimas desse apagamento, que teve como uma das causas justamente a inexistência de uma cultura escrita tradicional. Os resquícios materiais e imateriais deixados pelos pré-cabralinos são, contudo, rico material de análise para historiadores que, associados com a arqueologia, podem explorar novas dimensões técnicas de seu trabalho.
A escrita de uma história indígena das terras pindoramas, mais tarde conhecidas como Brasil, começou a ser explorada e ganhar destaque a cada dia. Entendê-la significa se aprofundar no passado, mas também entender a situação atual do indígena no Brasil. A frase de Aílton Krenak, jornalista, produtor gráfico e líder indígena, chama a atenção para tal apagamento e para a urgência em recuperá-lo em um mundo que se viciou na exclusividade do estudo de documentos escritos, uma herança ocidental e eurocêntrica, e que se esqueceu das várias outras formas que um ser humano em comunidade pode ler seu próprio universo.
A famosa frase de Jean-Paul Sartre “O inferno são os outros”, parece ser a mais interessante para iluminar essa questão. Mesmo após o período da colonização, prevalece o estranhamento daquilo que não é ocidental. A falta de reconhecimento das narrativas orais descredita o conhecimento milenar que já existia no país antes mesmo de um alfabeto pautar nossa fala por aqui. Exemplo disso é como tradicionalmente nos deparamos no Brasil com pessoas que tem um vasto conhecimento sobre mitologia grega, nórdica, céltica e até egípcia, e quase nenhum acerca das lendas e mitos presentes nos inúmeros povos indígenas brasileiros, uma riquíssima cosmogonia baseada na observação da natureza, recheada de deuses, explicações do comportamento da natureza e criação do mundo.
Dessa forma, jogar todo esse universo de extrema complexidade no macrotema “Pré-História” não só é tratar a questão de forma ultrapassada e simplista, como corroborar com um apagamento histórico secular, fruto de um longo processo etnocêntrico que ocorre desde o período colonial brasileiro. É necessário que a pesquisa acerca da história indígena brasileira afaste-se da ultrapassada e tradicional historiografia, baseada na narrativa indígena produzida por cronistas portugueses do século XVI, e passe cada vez mais a ser pensada do ponto de vista dos povos americanos originários, com o apoio de uma imensidão de documentos históricos além dos escritos.
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