“Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.”
Na escola nos ensinam que no dia 22 de abril de 1500, um navegador português chamado Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. Mas como pode ele ter descoberto um território que já era habitado por outros povos? Pois bem, essa história que é passada de geração para geração em quase todo o sistema educacional brasileiro não só ignora a presença dos povos originários no Brasil, como também contribui para a disseminação de uma ideia romantizada sobre o primeiro contato entre os indígenas e os portugueses, ou seja, uma ideia de que tudo aconteceu da maneira mais pacífica e amigável possível.
No primeiro documento escrito sobre a chegada dos portugueses no Brasil, que foi a Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, pode-se observar evidentemente essa romantização: “Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio.”
Segundo o livro Brasil: Uma biografia, de Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, o relato do fidalgo escrivão ao rei de Portugal não considerou o grande choque cultural que foi o encontro dos nativos com os portugueses, tendo em vista as diferenças políticas, culturais e linguísticas entre eles. Também vemos isso no trecho da carta de Pero Vaz de Caminha sobre a primeira missa realizada no território brasileiro, relato este que viria a contribuir para um mito recorrente da nossa história, o qual coloca o sujeito indígena enquanto um “bom selvagem”, isto é, enquanto um indivíduo passivo, fácil de ser dominado e catequizado.
“Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e de tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.”
O que transpõe, mais uma vez, a ideia romantizada de que a conquista portuguesa do Brasil teria sido feita sem o uso da violência pelos colonizadores portugueses, ou sem qualquer tipo de resistência por parte dos indígenas. Mas se a história do descobrimento do Brasil pelos portugueses é uma história sobre a conquista de um território que já era habitado, o que de fato aconteceu depois que os europeus chegaram aqui?
A princípio, o território brasileiro foi nomeado pelos portugueses como “Vera Cruz”, contudo, a partir de 1501, o termo entrou em disputa, sendo por ora chamado de “Terra dos Papagaios”, e depois de “Terra de Santa Cruz”. Não obstante, foi a partir de 1512, com a introdução do pau-brasil[1] no mercado internacional, que a América colonizada pelos portugueses passou a ser conhecida pelo nome “Brasil”.
Também, nas primeiras décadas após a invasão portuguesa, em virtude do potencial em riquezas da fauna brasileira, o Brasil foi o motivo de diversas disputas políticas e diversos conflitos entre os países europeus. Prova disso é a invasão francesa ao Rio de Janeiro em 1555, onde eles construíram o forte Coligny em uma das ilhas da baía da Guanabara e por ali permaneceram durante cinco anos, nomeando o lugar de “França Antártica”.
Quanto aos povos originários, no início da colonização, foram submetidos ao sistema de escambo, isto é, eram usados como mão-de-obra para a extração do pau-brasil e em troca recebiam objetos dos portugueses. Mais tarde, tendo em vista a exploração das drogas do sertão[2] e o estabelecimento dos engenhos de açúcar no nordeste brasileiro, os colonos recorreram à escravização dos povos indígenas por meio de expedições denominadas “estradas e bandeiras”, que tinham como objetivo a captura dos nativos para o trabalho escravo e a procura por metais preciosos. Isso permaneceu naturalizado por séculos, até que, em 1757, um decreto do Marquês de Pombal[3] proibiu a escravidão indígena no Brasil.
Também é importante considerar que a escravidão dos povos originários acabou se tornando um problema para a metrôpole portuguesa por diversos fatores, como a lei da “guerra justa”, o genocídio da população indígena e a resistência desses povos à dominação portugesa.
No que se refere à lei da guerra justa, é possível evidenciá-la como resultado da ação da Companhia de Jesus no território brasileiro, visto que essa ordem religiosa, criada em 1534, pressionou a Coroa Portuguesa a permitir a escravização dos nativos somente em casos de “guerra justa”, isto é, somente quando o indígena fosse hostil ou selvagem. Assim, os jesuítas (os membros da Companhia) podiam dar continuidade à doutrinação católica.
Sobre o genocídio da população indígena, é evidente que isso se deu em virtude da violência e exploração dos nativos, e também das doenças trazidas ao Brasil pelos europeus. De acordo com as autoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, “Um verdadeiro morticínio teve início naquele momento: uma população estimada na casa dos milhões em 1500 foi sendo reduzida aos poucos a cerca de 800 mil”. Sendo assim, é indiscutível que a presença portuguesa no território brasileiro contribuiu diretamente para a morte de milhares de indígenas, os quais resistiram à dominação.
Dessa forma, é intolerável que continuemos a conhecer a história do nosso país segundo a perspectiva eurocêntrica[4], segundo o lado dos portugueses, dos “descobridores”. Afinal, sabemos que os indígenas são os povos originários do nosso país, e merecem que a história do Brasil seja recontada e reconhecida enquanto uma história de ancestralidade e resistência indígena.
Por uma educação não eurocentrada
Antes de mais nada, é preciso que o sistema educacional brasileiro passe a abolir o termo “índio” nas escolas, pois essa denominação é generalizada, quer dizer, ela não considera o fato dos povos indígenas serem diversos e terem diferentes formas sociais de se organizar. Também, é preciso ressignificar a comemoração do “dia do índio”, a fim de que, desde a infância, as pessoas não indígenas saibam que o dia 19 de abril é um símbolo de resistência e de luta dos povos originários no Brasil, e que isso deve ser extremamente respeitado e comemorado de uma maneira política, não fantasiosa, como é feito nas escolas. Além disso, enquanto brasileiros e brasileiras, precisamos de um ensino que esteja comprometido com o conhecimento cultural, histórico, político e linguístico dos povos indígenas, para que assim, esse grupo deixe de viver às margens da sociedade, e passe a ser incluído e compreendido pelos não indígenas no Brasil.
Afinal, se segundo o filósofo Denis Diderot, “A ignorância não fica tão distante da verdade quanto o preconceito”, quer dizer, o medo do desconhecido leva ao preconceito, é importante que nós, não indígenas, saibamos sobre a história, a cultura e os direitos dos povos originários do nosso país, ao ponto de compreendermos a nossa responsabilidade histórica com a realidade desse grupo, e, consequentemente, a necessidade de nos comprometermos politicamente com as diversas causas que eles defendem.
À vista disso, é evidente a necessidade de uma reparação histórica do Brasil com os povos originários cujo comprometimento e cuja eficiência sejam mais evidentes. É necessário que desde pequenos, nós, não indígenas, saibamos como nos referir às pessoas indígenas, e o que de fato aconteceu com esse grupo após a invasão portuguesa no território brasileiro. É necessário que tenhamos mais contato com a realidade social, política e econômica desses povos no nosso território.
[1] “O pau-brasil é uma árvore típica da Mata Atlântica (Paubrasilia echinata) e que no século XVI era conhecida pelos índios tupis de ibirapitanga. É uma árvore que pode alcançar até 15 metros e possui galhos com espinhos. A árvore ganhou importância para os portugueses por conta da sua madeira, que poderia ser utilizada na construção de inúmeros objetos (como móveis e caixas), mas, principalmente, porque a resina da madeira era utilizada para produzir corante utilizado para tingir tecidos.”
[2] “produtos obtidos por atividade extrativa no Brasil colonial (cacau, canela, castanha, cravo, pimenta etc.).”
[3] O Marquês de Pombal é o nome pelo qual ficou conhecido Sebastião José de Carvalho e Melo, diplomata e primeiro-ministro português. Faz parte da geração de governantes conhecida como déspotas esclarecidos que afetou o Reino e suas colônias.
[4] “centralizado na Europa e/ou nos europeus; que tende a interpretar o mundo segundo os valores do ocidente europeu”
Referências bibliográficas:
SCHWARCZ, Lilia M; STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma biografia. 2015, pg. 22-49.
A Carta de Pero Vaz de Caminha: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000283.pdf
http://www.clickideia.com.br/portal/conteudos/c/47/23025
https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/franceses-no-brasil-brasil-colo nial-sofreu-duas-grandes-invasoes.htm
https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/escravidao-indigena-x-escravidao -africana.htm
https://www.todamateria.com.br/escravidao-indigena-no-brasil-colonial/https://brasilescola.uol.com.br/historiab/entradas-bandeiras.htm
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