A Última Floresta, disponível na Netflix, é um filme documental feito pelo diretor Luiz Bolognesi em parceria com Davi Kopenawa Yanomami. É um retrato do dia a dia dos Yanomami, que mostra suas crenças, costumes, histórias e desafios; como o próprio Bolognesi diz: "foi um filme feito com os ouvidos"[1], nos levando a posição de observadores dessa cultura tão rica. Assim, o filme leva o espectador a banhos de rio, rituais xamânicos, caça, produção de cestos, preparo de comidas, descanso na rede… Todas essas atividades diárias nos são apresentadas pelos próprios Yanomami como um convite ao convívio e à aproximação do "povo da cidade" com o "povo da floresta".
A combinação dos tons de verde da floresta em conjunto com o amarelo e vermelho dos adornos usados por eles; os corpos pintados com traços geométricos, enfeitados com flores e penas; toda a estética que nos faz mergulhar no mundo Yanomami é muito bonita. As imagens aéreas da floresta amazônica, além das cenas terrestres e aquáticas, nos fazem lembrar mais uma vez do quão precioso é esse bioma e nos introduzem à relação que os Yanomami possuem com o meio em que vivem. O objetivo é mostrar a força e a beleza dos Yanomami, de modo que, a frase do diretor "quando a gente se aproxima, a gente se encanta, quando a gente se encanta, a gente respeita"[2], possa se concretizar.
A colaboração com Davi Kopenawa, como co-roterista e personagem, foi essencial para que os Yanomami pudessem ser retratados de forma verídica e digna, uma vez que Davi é o principal porta-voz do povo, além de ser ativista político e liderar movimentos para garantir a proteção das terras Yanomami – as quais são constantemente ameaçadas pela atividade de garimpo ilegal. Suas ações ajudaram a propagar a cultura Yanomami internacionalmente e divulgar informações sobre o quanto o garimpo é prejudicial para a floresta e os seres que a habitam.
Essa questão do garimpo é algo constantemente mencionado no filme. Atualmente, cerca de 20 mil garimpeiros voltaram a invadir as terras dos Yanomami, causando uma série de problemas, incluindo a dispersão da covid-19 dentre as aldeias. É interessante perceber como os próprios Yanomami enxergam esse problema: através da sua mitologia. Omama, espírito protetor dos Yanomami, enterrou os espíritos maléficos debaixo da terra junto com o minério, por isso, não se deve tirar o minério da terra, pois isso desperta a fumaça da doença. Omama deu a floresta para os Yanomami cuidarem, assim, eles se sentem sempre no dever de protegê-la.
A relação do povo Yanomami com a floresta é, na minha opinião, a parte mais admirável do filme. "Eu sou a própria floresta, quente" foi uma frase, proferida por Davi, que me marcou em particular. Ela mostra como o indivíduo Yanomami se vê como parte constituinte da floresta, como um não vive sem o outro, a ponto de compartilhar das mesmas sensações. Isso, para mim, que me incluo no "povo da cidade" é algo extremamente distante. Estar conectado com a natureza, que na maioria das vezes é vista como algo inanimado, é quase estranho. Geralmente, o comum é não sentir compaixão e nem pertencimento, ver na televisão que a Floresta Amazônica está sendo destruída, se aborrecer por alguns instantes e depois se distrair com outra coisa.
Como transpor essa barreira (ou cegueira) que o povo da cidade construiu para se conectar com algo maior, cheio de vida e fertilidade? Acho que para nós, seres da cidade, isso é praticamente impossível. Nós próprios cavamos o buraco em que estamos presos, e as amarras do sistema que criamos são pouco flexíveis e abertas para formas diferentes de viver essa vida. Principalmente porque, se formos analisar historicamente, os Yanomami estão em seu território desde 500 anos antes do Brasil sequer existir – ou seja, os ensinamentos e visões sempre estiveram lá, disponíveis para serem compartilhados, foi o povo da cidade que não estava disposto a escutar e considerar. Muito pelo contrário, a única disposição que esse povo tinha era para explorar e matar.
E agora estamos aqui, com todas as instituições que estudam o clima e o meio ambiente soltando alertas constantes sobre mudanças climáticas, sobre como o nosso modo de vida é insustentável, sobre como o sistema está acabando com os biomas e outras formas de vida, sobre como a vida do próprio ser humano está em risco… E a resposta para tudo isso esteve na nossa cara o tempo inteiro, mas sempre fomos muito orgulhosos e etnocêntricos [3] para considerá-la. É graças a Davi Kopenawa Yanomami e a valorização de outros autores decoloniais [4] como Ailton Krenak [5], que estamos sendo apresentados e dando atenção a essas diferentes cosmovisões [6].
Este documentário exibe um rastro de esperança em contraste aos retrocessos que o atual governo está promovendo, que toma medidas em prol da mineração e da facilitação do garimpo ilegal em terras indígenas legamente protegidas. O filme mostra que os Yanomami não vão parar de proteger seu território e sua floresta, por mais que todos os fatores (incluindo o governo federal) não contribuam para tal. Ele mostra a força, a resiliência e a beleza dos Yanomami, que continuam leais às suas convicções e modo de vida, algo que deve inspirar não só o Brasil, mas o mundo, dando exemplo de convivência pacífica, recíproca e respeitosa com o meio ambiente. As chaves para um futuro mais equilibrado estão dentro da Amazônia, em meio a pequenas vilas na África, no topo da Cordilheira dos Andes, em ilhas isoladas no meio do oceano: junto àqueles que são vistos como "atrasados" ou "primitivos". O futuro é ancestral.
[1] Bate-papo transmitido pelo canal do Youtube do Instituto Socioambiental (ISA), intitulado como: "Debate com Davi Kopenawa, Ailton Krenak e Sônia Guajajara"
[2] Ver nota de rodapé 1.
[3] Conceito antropológico que define as atitudes preconceituosas de quando uma determinada cultura subjuga a outra, e se auto compreende como superior.
[4] Movimento epistemológico que busca produzir conhecimento de forma não eurocentrada.
[5] Líder indígena de etnia krenak, autor, ambientalista, poeta e filósofo.
[6] Maneiras subjetivas de compreender o mundo e suas questões.
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