Até recentemente, os direitos da comunidade LGBTQIA+ eram insuficientes. Em um passado não tão distante, a homossexualidade era considerada como uma doença e sequer se falava da bissexualidade, transexualidade, entre outros.
Em 1886, a homossexualidade foi considerada uma doença congênita, ocorrida durante o nascimento ou adquirida ao longo da vida. Na década de 1940, caso um indivíduo apresentasse qualquer comportamento que tivesse relação com a homossexualidade, ele deveria ser submetido aos mais diversos tratamentos. Caso esses não tivessem o resultado esperado, ou seja, “reverter” a homossexualidade, ele seria castrado, com o consentimento de seus familiares.
Na década de 1950, a Associação Americana de Psiquiatria determinou, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que a homoafetividade era uma desordem. Entretanto, como não houve qualquer comprovação científica de que era, de fato, uma doença, ela foi retirada da lista de transtornos mentais em 1973.
Contudo, mesmo após a impossibilidade de os cientistas comprovarem a teoria de que a homossexualidade seria um distúrbio, a Organização Mundial de Saúde (OMS) a incluiu na Classificação Internacional de Doenças (CID) de 1977, como uma doença mental. Tal determinação somente veio a ser afastada em 1990.
Finalmente, em 1993, a homossexualidade foi mundialmente retirada da lista de doenças mentais e passou a ser considerada como uma forma natural de desenvolvimento sexual. Apesar disso, até os dias atuais, a comunidade LGBTQIA+ ainda enfrenta sérios preconceitos e luta diariamente por seus direitos de se expressar, de amar e de viver uma vida livre e digna.
Considerando este contexto mundial, em 1988, depois de um longo período de regime militar no Brasil, foi promulgada a Constituição Federal, conhecida como “Constituição Cidadã”, pois instituiu diversos direitos e garantias fundamentais que não eram assegurados anteriormente. Dois de seus preceitos fundamentais são: (i) a igualdade entre os indivíduos e (ii) a dignidade da pessoa humana, e, consequentemente, inadmite-sem quaisquer preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e outras formas de discriminação.
Esses princípios norteadores do Direito brasileiro e o fato de que o ordenamento jurídico não ser imutável em sua essência, implicam na necessidade das normas jurídicas acompanharem as mudanças e anseios da sociedade. Dessa forma, apesar de, inicialmente, não existirem previsões expressas com relação às garantias conferidas à comunidade LGBTQIA+, aos poucos, com muitos anos de luta, elas foram sendo conquistadas e passaram a ser admitidas principalmente pela Jurisprudência pátria[1].
Até pouco tempo atrás, o direito brasileiro não reconhecia a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade pertencente ao direito de família, limitando-os ao direito patrimonial, que de forma alguma atendia às necessidades dessas verdadeiras famílias[2]. Entretanto, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF), julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)[3] nº 132, reavaliando completamente o conceito de família e equiparou a união homoafetiva à entidade familiar, garantindo, assim, o direito de registro de uniões estáveis entre pessoas da comunidade LGBTQIA+ e sua conversão em casamento civil.
Ainda, o casamento homoafetivo passou a ser equiparado ao casamento heteroafetivo a partir de julgamentos realizados pelos Tribunais brasileiros, especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF). Isso significa que, apesar de não existir uma lei que efetivamente discipline a matéria, passou-se a entender que os direitos e deveres decorrentes do casamento são exatamente os mesmos, tanto para casais heteroafetivos, como para aqueles formados por membros da comunidade LGBTQIA+. Então, nos dias de hoje, os cartórios possuem a obrigação de registrar os casamentos entre as pessoas do mesmo sexo, ou converter a união estável já existente em casamento.
Após tais modificações, não há o que se falar em qualquer impedimento para a adoção de crianças por casais LGBTQIA+, por exemplo. É necessário apenas comprovar a estabilidade familiar, por meio do casamento ou união estável, pois a criança e o adolescente detêm o direito de serem criados em lares bem estruturados e seguros, de acordo com o que preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
É visível que as famílias formadas por indivíduos da comunidade LGBTQIA+ têm plena e total capacidade de serem tão bem estruturadas quanto as famílias heteroafetivas, pois o que importa não é a orientação sexual, e sim como as relações se desenvolvem no núcleo familiar. Portanto, a orientação sexual de um indivíduo não pode, de forma alguma, ser utilizada como critério discriminatório e nenhum sujeito pode ter o seu direito de constituir uma família negado. A presença de preconceitos contra as unidades familiares que se encontram fora do padrão heteronormativo gera diversas limitações ao exercício da conjugalidade e da parentalidade não-tradicionais. Limitações essas que já foram ceifadas pela orientação jurisprudencial recente.
Outra grande conquista recente da comunidade, completamente pautada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, foi o uso do nome social por parte de pessoas transexuais, travestis e outros gêneros. Isso porque o nome com que foram inicialmente registrados, muitas vezes, não condiz com sua real identidade de gênero. Assim, a alteração no registro pode ser realizada perante qualquer cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, sem que haja a necessidade do auxílio de um advogado e sem a obrigatoriedade da apresentação de decisão judicial ou laudo médico. Além disso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou o entendimento de que é possível a mudança do gênero indicado no Registro Civil de Nascimento, independentemente da prática de qualquer cirurgia de transgenitalização.
Apesar de todos esses avanços, o Brasil ainda se mantém na liderança no ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo[4]. Só em 2020, foram 175 travestis e mulheres transexuais assassinadas.Embora seja considerado o país onde mais ocorrem crimes de ódio contra a comunidade LGBTQIA+ no mundo, o Brasil não possui uma lei que criminalize explicitamente a homofobia e a transfobia, tendo sido necessária a intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF), a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e o Mandado de Injunção nº 4.733[5], para incluir, provisoriamente, a discriminação contra LGBTs numa lei já existente (Lei do Racismo - Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989), até que o Congresso venha aprovar uma lei específica.
Percebe-se, portanto, que, apesar de serem diversos os avanços ocorridos nos últimos anos no que concerne à aquisição de direitos pela comunidade LGBTQIA+, ainda há muito a ser feito para que essas pessoas possam viver, amar e existir em harmonia, sem sofrerem constantes discriminações por parte da grande maioria da sociedade. Nos parágrafos anteriores demonstramos o que existe e o que ainda não foi disciplinado na legislação pátria e o que o Direito brasileiro pode assegurar à comunidade LGBTQIA+. Agora, quando falamos do campo filosófico do Direito, devemos ter em mente que existem duas grandes correntes que vão nos orientar no estudo e na compreensão do que é o Direito e qual a sua relação com a comunidade LGBTQIA +.
Hans Kelsen, um jurista e filósofo austríaco, afirmava que somente com rigor metodológico poderíamos fazer ciência[6]. Tendo em vista o caráter meramente descritivo, o pensador elegeu as normas jurídicas como seu objeto de estudo, construindo, assim, uma teoria formal, isto é, desvinculada do cotidiano e da vida. Ao lado dessa teoria, e muitas vezes aspirando combatê-la, surgiram outras que procuraram explicar o fenômeno jurídico de maneira distinta da proposta por Kelsen, que via somente na norma o objeto de estudo do jurista, excluindo toda e qualquer intervenção de valores de sua análise, sejam estes históricos, sociais ou individuais.
O que isso tem a ver com os direitos da comunidade LGBTQIA+? Tudo!
Se considerarmos que o Direito trata apenas da norma, ou seja, do que está escrito na lei, estaremos fechando os olhos para uma sociedade que é completamente desigual e que é cheia de preconceitos com as minorias. Focar apenas na lei é ignorar os problemas enfrentados por aqueles que têm seus direitos e garantias violados cotidianamente por não se encaixarem em padrões rígidos de comportamento conforme o sexo biológico. A heterossexualidade e as normas de gênero foram, historicamente, naturalizadas como as únicas expressões legítimas de ser e se colocar no mundo como homem e mulher. Por isso, a população LGBTQIA+ é discriminada, tratada de maneira diferente e excluída, sendo, consequentemente, alvo de violência nas mais diversas formas.
É importante saber que a orientação sexual e a identidade de gênero de cada pessoa não é uma escolha e que as pessoas LGBTQIA+ devem ter os mesmos direitos e obrigações que as demais.Tendo em vista a necessidade de um Direito que não esteja preso às normas e à mera leitura da lei, a teoria tridimensional do Direito, elaborada pelo jusfilósofo brasileiro Miguel Reale em 1968, pressupõe que fato, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica[7]. Dessa forma, os sociólogos, filósofos e juristas não devem estudar o Direito e os seus fatores isoladamente, mas sim de modo conjunto, onde estejam todos relacionados à realidade da vida em sociedade.
A partir dessa visão tridimensional do Direito, não podemos imaginar as leis sem levar em conta a cultura, os movimentos sociais, os hábitos e as demandas do povo. Sem esses elementos não é possível a criação de leis justas e democráticas. Quando falamos dos direitos das pessoas homossexuais, transexuais e de todas as pessoas da comunidade LGBTQIA+, não podemos imaginar o ordenamento que deve ser seguido por um povo sem pensar nessa comunidade em questão.
A tridimensionalidade, ao analisar a experiência jurídica, busca atualizar os valores e aperfeiçoar o ordenamento jurídico para adequá-los às novas exigências da sociedade[8], como a luta da comunidade LGBTQIA+ por direitos. Portanto, essa teoria está inserida num processo essencialmente dialético[9], onde as regras jurídicas são compostas do material vivo da história, pois a realidade cultural e histórica de uma sociedade é resultado das experiências do homem no meio em que vive. Isso significa que o Direito deve ser a consequência de uma interação do fato, do valor e da norma na busca de soluções racionais e justas para os conflitos.
Apesar dos avanços na esfera judicial, o Brasil é um dos únicos países do mundo que realiza as uniões estáveis e casamentos homoafetivos sem que haja uma legislação para isso. Essa omissão legislativa deve ser suprida. Contudo, ao invés de uma política que atenda a todos e que seja, de fato, inclusiva, nos deparamos com Projetos de Leis vergonhosos como o Projeto de Lei (PL) nº 504, de 2020, do Estado de São Paulo e de autoria da deputada Marta Costa do Partido Social Democrático, que, contendo uma proposta completamente inconstitucional, pretende proibir a veiculação de propagandas no estado de São Paulo com a presença de LGBTs.
Percebe-se que a falta de atuação do Poder Legislativo faz com que a população LGBTQIA+ brasileira não possua nenhum de seus principais direitos efetivamente assegurados, e mais, faz com que tenham seus direitos frequentemente violados. A exemplo, temos o que acontece na 13ª Promotoria de Justiça de Florianópolis (SC), que já desacolheu mais de 100 pedidos de casamentos homoafetivos sob a alegação de que as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não se sobrepõem à lei.
A história da comunidade LGBTQIA+ é, sem dúvida alguma, uma história de luta e resistência. Lutar pelo direito de ser reconhecido como ser humano e de ter garantidos os seus direitos fundamentais é sua prerrogativa.Por fim, podemos dizer que a luta da comunidade LGBTQIA+ é a luta pelo Direito. Nas palavras de Rudolf von Ihering: “Resistir à injustiça é um dever do indivíduo para consigo mesmo, porque é um preceito da existência moral; é um dever para com a sociedade, porque essa resistência não pode ser coroada com o triunfo, senão quando for geral.”[10].
Referências:
American Psychiatric Association
“Família e parentalidade homoafetiva: além do reconhecimento judicial” (SILVA, Lara Ramos, 2013).
[1] Jurisprudência é um termo jurídico utilizado para designar o conjunto de decisões, aplicações e interpretações das normas jurídicas brasileiras. Ou seja, é a consolidação das formas como as leis são utilizadas.
[2] O direito de família tem como objetivo regular as regras e obrigações do convívio familiar, isto é, envolve as normas jurídicas que tratam sobre casamento, divórcio, guarda de filhos, adoção, entre outros. O fato do Direito brasileiro, até pouco tempo atrás, não reconhecer uniões homoafetivas como integrantes desse ramo do direito significa que tais pessoas não poderiam usufruir das normas jurídicas por ele contidas e nem requerer a sua tutela em tribunais.
[3] Dois mecanismos comumente utilizados para realizar o controle de constitucionalidade de normas jurídicas.
[4] JUSTO, Gabriel. Revista Exame - “Pelo 12º ano consecutivo, Brasil é país que mais mata transexuais no mundo” Disponível em: < Pelo 12º ano consecutivo, Brasil é país que mais mata transexuais no mundo > [19/11/2020]
[5] Dois mecanismos comumente utilizados para realizar o controle de constitucionalidade de normas jurídicas e a garantia de direitos fundamentais.
[6] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8˚ ed., São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[7] AUGUSTO, Igor Antonio Michallene. O que é a Teoria Tridimensional do Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 101, jun 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11825>. Acesso em mar 2018.
[8] REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003.
[9] Hoje em dia, o conceito de dialética tornou-se a capacidade de se perceber a complexidade e, mais que isso, as contradições que constituem todos os processos. Para saber mais: https://www.todamateria.com.br/dialetica/.
[10] IHERING, Rudolf Von, A Luta Pelo Direito, São Paulo: ed. Martin Claret, 2002.
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