É fato que o Brasil é um país cuja política é repleta de detalhes no mínimo curiosos e, muitas vezes, exóticos. Por aqui, celebridades são constantemente eleitas para cargos públicos e, até mesmo, um macaco – o chimpanzé Tião – já teve sua candidatura lançada para a Prefeitura do Rio de Janeiro em 1988, tendo arrecadado cerca de 400 mil votos na época[1].
Essas figuras alheias à política tradicional – e que, geralmente, não fazem parte do grupo de políticos que passam décadas ocupando cargos nas diferentes esferas da Federação – costumam ser eleitas em períodos de distanciamento do povo com a política, nos quais, em geral, problemas sociais e econômicos parecem estar longe de uma solução. De todo modo, é inegável que essas pessoas costumam ganhar a eleição para cargos mais simples, como de vereadores, deputados estaduais ou, quando muito, prefeitos de cidades menores. Não foi isso, porém, o que aconteceu na vida de Volodymyr Zelensky, o comediante que se tornou o presidente da Ucrânia na primeira guerra em território europeu acompanhada 100% do tempo nas redes sociais. Sua trajetória é bastante interessante e, não necessariamente, é tão longe da política como muitos pensam.
Em primeiro lugar, é interessante destacar que Zelensky, filho de uma família judia, nasceu em 1978 na cidade ucraniana de Kryvyi Rih, um importante centro industrial e administrativo regional. Mais tarde, rumou a Kiev – capital do país – até se formar em Direito pela Universidade Nacional[2]. Aqui talvez seja o primeiro choque do público em geral que acompanha o conflito armado iniciado no final de fevereiro: o líder ucraniano é formado em um curso bastante comum entre aqueles que ingressam na carreira política (inclusive no Brasil).
Foi apenas após a faculdade de Direito que Zelensky decidiu por seguir a carreira de comediante, tendo sido responsável pela fundação da produtora Kvartal 95 em 2003, empresa que se estabeleceu como líder do setor, fornecendo uma gama completa de serviços na produção de programas de TV, filmes, séries, longas-metragens e projetos de comédia com avaliações constantemente altas. Segundo Zelensky, o objetivo ambicioso da Kvartal 95 é “fazer do mundo um lugar melhor, mais gentil e mais alegre com a ajuda das ferramentas que temos, ou seja, humor e criatividade”. Além disso, em seu site oficial[3], é afirmado que a companhia está “caminhando para este objetivo, tentando conquistar o mundo inteiro, é claro 😉”.
Ao longo dos anos, Zelensky produziu programas para uma rede de propriedade do bilionário e oligarca ucraniano Ihor Lolomoisky, um dos grandes apoiadores da candidatura presidencial de Zelensky. Isso, inclusive, fez com que muitos ucranianos temessem que uma futura e – até então – eventual vitória do comediante na disputa presidencial significaria a transformação do cargo de presidente em uma figura meramente decorativa, utilizada para atender aos interesses de uma figura poderosa, supostamente corrupta e investigada nos Estados Unidos por possível fraude e lavagem de dinheiro[4]. Na prática, contudo, Zelensky demonstrou atuar com uma independência que surpreendeu grande parte dos seus críticos, tendo, dentre outras questões, recusado a reprivatização do PrivatBank, instituição financeira de propriedade de Lolomoisky antes de ser nacionalizada.
De todo modo, fato é que a corrupção é um problema profundo e antigo nas terras ucranianas, sendo que, em 2015, diversas notícias[5] já indicavam que o povo da Ucrânia se cansava de promessas nunca pagas de avançar com reformas sociais importantes e, segundo dados de 2014, o país ocupava o 142º lugar (entre 175), o pior entre toda a Europa, na lista de percepção de corrupção[6].
Neste cenário, qualquer povo do mundo se cansaria de falsos discursos de políticos tradicionais e buscaria por alternativas. Não foi diferente com a Ucrânia. No mesmo período – ainda em 2015 – surgiu, nas mídias sociais ucranianas, o sitcom[7] “Servo do Povo”, que contava a conturbada e tribulada vida do personagem professor de história Vasyl Holoborodko, o qual, por acaso, acabou sendo eleito como presidente da Ucrânia após gravar um vídeo em que protestava contra a corrupção no país, apresentando a elite local como sendo incompetente e criminosa. O professor de história fictício que foi lançado como presidente era o próprio Zelensky.
Anos depois, com o sucesso gigantesco do programa, em 2018, a equipe da Kvartal 95, produtora de Zelensky, decidiu criar um partido político com o mesmo nome da badalada série “Servo do Povo” e Zelensky, em 21 de abril de 2019, derrotou o então presidente ucraniano, Petro Poroshenko, e foi eleito presidente do seu país com incríveis 73% dos votos, tornando-se o 6º presidente da Ucrânia. Até então, nunca havia sido empossado para comandar nenhum tipo de cargo eletivo na Administração Pública.
Logo no começo de seu mandato, Zelensky esteve no meio de uma história bastante controversa e escandalosa, na qual o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, teria oferecido 400 milhões de dólares à Ucrânia em troca de informações comprometedoras do filho do atual presidente estadunidense Joe Biden. Esse episódio acarretou na abertura de um processo de impeachment no Congresso dos Estados Unidos contra Trump, mas acabou sendo encerrado pelo Senado[8].
Aparentemente, porém, Zelensky parece ter dado a volta por cima e, em meio ao caos entre a Ucrânia e a Rússia, iniciado após a invasão ordenada pelo presidente Vladimir Putin, tem se portado – ao menos, por enquanto, e pelo que tem sido transmitido ao público pela imprensa ocidental – como um chefe de Estado forte, defensor de seu povo e corajoso. Diferentemente do que muitos imaginavam, Zelensky – até o dia em que escrevo o presente artigo (02/03/2022) não saiu da Ucrânia e segue passando mensagens de apoio aos ucranianos e suplicando por apoios mais decisivos do ocidente – em especial, Estados Unidos e Europa – contra o ataque russo.
Segundo a consultora de comunicação Yaryna Klyuchkovska, o apoio a Zelensky cresceu ainda mais em 19 de fevereiro de 2022, quando, na ameaça cada vez mais clara de uma guerra, discursou na Conferência de Segurança de Munique dizendo que teria visitado um jardim de infância no leste do país que havia sido atingido por um míssil. Em seu discurso, afirmou que “quando uma cratera de bomba aparece no pátio da escola, as crianças perguntam: 'O mundo se esqueceu dos erros do século 20?”. Além disso, no mesmo dia, Zelensky direcionou duras críticas aos Estados Unidos e ao Reino Unido, afirmando que “a indiferença faz de você um cúmplice"[9].
Em resposta a uma das fotos de Zelensky durante a guerra, o escritor britânico Bem Judah afirmou: “Se você tivesse dito a muitos de nossos bisavós no Pale [a zona do império russo em que os judeus ficavam confinados] que um homem judeu seria um ucraniano líder de guerra contra uma invasão russa, eles teriam ficado incrédulos”[10].
Por mais que, até o momento, o Ocidente ainda não tenha entrado em conflito direto com a Rússia – o que, provavelmente, não mudará tão cedo – e as sanções tenham sido direcionadas para atingir a economia russa e a moral de Putin, fato é que o comediante Zelensky tem tido um papel significativo na defesa da memória das vítimas ucranianas e na busca por uma proteção mais efetiva de seu país contra as tropas invasoras. Seus discursos têm feito com que tradutores alemães se emocionem e chorem em plena sessão do Parlamento Europeu em Bruxelas[11] e, mais do que isso, têm conseguido cativar o apoio de milhares de cidadãos ao redor do mundo em torno da crise humanitária pela qual seu país tem passado.
Independentemente do resultado da guerra, é inegável que o comediante fez barulho na mídia e nos órgãos internacionais em prol de seu povo e, até aqui, desgastou a imagem do poderoso e imprevisível presidente da Rússia.
Referências bibliográficas:
[1] Disponível em:< https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/macaco-tiao-o-candidato-do-povo.phtml>. Último acesso em 02.03.2022. Vale destacar, contudo, que a votação não foi considerada válida, e ocorreu como uma forma de protesto organizado pela Revista Casseta Popular.
[2] Disponível em:< https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60545901>. Último acesso em 02.03.2022.
[3] Disponível em:< https://kvartal95.com/en/about/>. Último acesso em 02.03.2022.
[4] Disponível em:< https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60545901>. Último acesso em 02.03.2022.
[5] Disponível em:< https://brasil.elpais.com/brasil/2015/02/07/internacional/1423342561_325764.html>. Último acesso em 02.03.2022.
[6] Idem.
[7] Segundo texto de Adriana Izel, o termo sitcom vem da expressão do inglês ;situation comedy;, que em tradução livre quer dizer comédia de situação. A principal característica da vertente é fazer humor com enredos cotidianos, como o dia a dia de uma família. Disponível em:< https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2016/10/25/interna_diversao_arte,554518/sitcom-formato-classico-do-humor-perdura-ate-os-dias-de-hoje-na-teve.shtml>. Último acesso em 02.03.2022.
[8] Disponível em:< https://gq.globo.com/Lifestyle/Poder/noticia/2022/02/volodymyr-zelensky-comediante-virou-presidente-com-missao-de-defender-ucrania.html>. Último acesso em 02.03.2022.
[9] Disponível em:< https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60545901>. Último acesso em 02.03.2022.
[10] Idem.
[11] Disponível em:< https://www.opovo.com.br/noticias/mundo/2022/03/01/tradutor-se-emociona-e-chora-ao-traduzir-discurso-de-zelensky-para-tv-alema.html>. Último acesso em 02.03.2022.
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