Diante da complexidade social, política e econômica vivida nas comunidades e favelas do Brasil, é importante fazermos uma análise da possibilidade da favela ser uma sociedade paralela, com seu direito próprio: um direito paralelo.
Mas antes disso, é interessante que o leitor saiba o que é pluralismo jurídico.
Dentro do Direito existem duas teorias: a teoria monista e a teoria pluralista, sendo a teoria monista aquela que defende que somente será considerado jurídico o conjunto de normas emanadas pelo Estado e a teoria pluralista, por sua vez, compreende o direito como manifestação autônoma da imagem estatal, pois ele surge da expressão da população e pode ou não ser oficial.
Boaventura de Sousa Santos, no livro “Discurso e Poder”, participou da matriz da teoria do pluralismo jurídico como teoria. Boaventura partiu de uma pesquisa empírica, analisando o discurso jurídico de uma comunidade periférica do Rio de Janeiro, denominada por ele de Pasárgada.
Em seu trabalho, Boaventura fez uma análise sociológica de grande importância, uma vez que demonstra o surgimento de uma auto-resolução dos conflitos de habitação, concretizados pela própria comunidade, paralelamente ao Estado e, inclusive, em determinados momentos, contrária ao ordenamento jurídico estatal brasileiro.
Seu estudo reflete a realidade de muitas comunidades periféricas, onde seus habitantes, com medo da repressão estatal por habitarem em locais – considerados por este como impróprios e em condições ilegais – acabam por criar um espaço jurídico próprio. Dentro desses espaços criados, a associação de moradores é quem resolve e organiza os conflitos da comunidade.
Dessa forma, o estudo de Boaventura traz a ideia de um novo direito, com origem nas classes oprimidas e que se emancipa, tornando-se efetivo e legítimo e contrapondo-se a burocracia do processo legislativo, formal estatal.
Assim, partindo do estudo de Boaventura, podemos constatar que a sociedade brasileira é permeada por diversas realidades e vivências. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) afirma que o país é o nono mais desigual do mundo, usando dados do Banco Mundial. O resultado é retrato do contraste entre bolsões de pobreza e riqueza no país. O Brasil está pior inclusive que Botsuana. O mais desigual é a África do Sul, e a Bélgica é o mais igualitário.
É notável a crescente desigualdade social presente em diversas cidades brasileiras, a exemplo do Rio de Janeiro. Possivelmente, a marginalização histórica, a falta de assistência e de atenção do Estado, no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais dos moradores da periferia, propiciaram o nascimento e desenvolvimento desse quadro social.
No campo do direito, a comunidade passa a resolver seus conflitos e estabelecer regras próprias no cotidiano dessas localidades, uma vez que é possível perceber que o sistema penal estatal, ainda que dada a importância de seu limite normativo – em razão de suas consequências irreparáveis –, nem sempre busca unicamente a proteção de um bem jurídico (coisa); mas sua organização demonstra também grande intenção em criminalizar determinadas parcelas da população. Dessa forma, as normas são estruturadas como instrumento de domínio do grupo socialmente superior e como meio de opressão ao grupo socialmente inferior.
A favela, há muitas décadas, é associada à criminalidade e à ausência do Estado que, por ser indiferente a esses territórios esquecidos, foi substituído por uma rede jurídica própria da favela. A noção de isolamento físico e social da favela demonstra, desde o passado, o pensamento de separação e exclusão oposto à integração e convivência.
Observamos que os problemas urbanos não são recentes, o quadro urbano atual se constitui em um dos maiores desafios neste século. As cidades não tinham e ainda não têm estrutura para dar assistência à grande demanda de moradores. Com o agravo da violência urbana, descaso com os cidadãos de baixa renda, o preconceito envolvendo racismo e a desigualdade social; uma parcela da população urbana se aloja e ocupa regiões irregulares da cidade.
O solo impróprio para criação de moradias, a ausência de saneamento básico, a deficiência de meios de transportes capazes de alcançar as mais extremas regiões dos periféricas, a carência de variados trabalhos sociais e de lazer para as presentes e futuras gerações, a péssima distribuição espacial da população e a falta de planos e de modos para evitar e corrigir as distorções e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente, vão na direção inversa do que deveria ser seguido pelas autoridades, obedecendo a lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, o Estatuto da Cidade.
Segundo a UNICAMP, “o Estatuto da Cidade ao regulamentar as exigências constitucionais reúne normas relativas à ação do poder público na regulamentação do uso da propriedade urbana em prol do interesse público, da segurança e do bem estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
Os moradores das favelas, não somente do estado do Rio de Janeiro, mas todos os moradores das regiões carentes do país, não recebem um terço do que está previsto no texto da lei. De acordo com uma pesquisa de campo e observações feitas pelo grupo Observatório de Favelas (OSCIP) chegou-se a conclusão que “[...] a favela é um território onde a incompletude de políticas e de ações do Estado se fazem historicamente recorrentes, em termos da dotação de serviços de infra-estrutura urbana (rede de água e esgoto, coleta de lixo, iluminação pública e limpeza de ruas) e de equipamentos coletivos (educacionais, culturais, de saúde, de esporte e de lazer) em quantidade e qualidade para as famílias ali residentes”.
O governo procura formas de contornar a situação precária dos moradores criando normas e atualizando regras para manter a paz social. Contudo, a ineficácia da aplicação dessas normas é visível e, principalmente, sentida pelas pessoas carentes de ações que providenciem as necessidades básicas de sua vizinhança.
A análise e o debate sobre a pluralidade jurídica nas comunidades periféricas brasileiras está longe de acabar. Devemos sempre ter em mente o quanto nossa sociedade é completamente desigual e que os direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal de 1988, como à vida, à igualdade, à dignidade, à segurança, à honra, à liberdade e à propriedade não são de fato garantidos aos indivíduos que fazem parte das classes pobres do nosso país. E é em razão dessa ausência que se faz necessária a implementação de novas formas de resolução de conflitos dentro dessas comunidades.
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