Pensemos em um mundo pós-guerra, em que a humanidade encontrava-se profundamente marcada pela perseguição e miserabilidade desumanas que muitos haviam sofrido pelos discursos de ódio, que eram aplaudidos cegamente por toda uma nação, e pelas atrocidades cometidas dentro dos campos de concentração. É neste cenário, pós-nazista, que a humanidade procurou reconstruir a noção por trás dos direitos humanos, para que se tornassem um paradigma referencial ético que orientasse a ordem internacional[1] contemporânea. Assim, inicia-se o processo de internacionalização dos direitos humanos.
A respeito de tal desenvolvimento, o teórico Thomas Buergenthal diz: “O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse”. A partir dessa visão, a dignidade da pessoa humana[2] assume o papel de valor-fonte, isto é, de princípio norteador, do Direito.
O movimento de internacionalização dos direitos humanos fez com que, também, se formasse um sistema internacional de proteção desses direitos. Tal sistema, por sua vez, encontra-se concretizado em tratados internacionais[3] ou em órgãos como a ONU[4]. A Declaração de Viena, famoso tratado internacional, prevê, por exemplo, que há uma interdependência entre os direitos humanos e os conceitos de desenvolvimento e democracia.
Mas, será que os conceitos de desenvolvimento e democracia são unânimes? Todo ser humano tem direito à dignidade da pessoa humana? Os direitos humanos são realmente universais?
Para responder a tais perguntas, é certo que podemos adentrar em grandes e diversos debates. Todavia, nesse texto serão analisadas as duas correntes utilizadas pelos teóricos para estudar a fundamentação dos direitos humanos. Então, pergunta-se, os direitos humanos possuem um sentido universal ou são culturalmente relativos?
O UNIVERSALISMO DOS DIREITOS HUMANOS
A corrente universalista dos direitos humanos afirma que tais direitos decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana. Dito princípio, por sua vez, vem da condição de ser humano. Essa concepção universalista vai ao encontro da filosofia iluminista kantiana[5] do séc. XVIII.
Antes de analisarmos mais a fundo o que essa filosofia diz, é importante relembrar que ela foi fonte de inspiração para a Revolução Francesa[6], a Declaração da Independência dos Estados Unidos[7] e outros movimentos político-sociais dos sécs. XVIII e XIX. Ademais, foi a concepção iluminista que serviu de parâmetro para os diplomas legais[8] que, hoje, versam sobre direitos humanos, como a Constituição Federal Brasileira de 1988[9].
Depois de feita essa pequena retomada histórica, volta-se a explicar a relação entre a ideia universalista dos direitos humanos e a filosofia de Immanuel Kant. Segundo Kant, os seres possuidores de razão (ou humanos) teriam como valor intrínseco a dignidade da pessoa humana por serem os únicos a ter essa razão.
Entretanto, aqui cabe questionar, quem eram considerados seres com razão para Kant? Será mesmo que ao escrever suas obras Kant estava a falar de todos os humanos, sem exceções?
O RELATIVISMO DOS DIREITOS HUMANOS
O pensamento relativista acerca dos direitos humanos propõe que a noção de tais direitos está intimamente relacionada aos sistemas político, econômico, cultural, social e moral vigentes em cada sociedade. Logo, em completa oposição a Kant, não há uma moral universal, uma vez que o mundo é composto por uma pluralidade de culturas. Nesse sentido, a teoria relativista tem uma maior aceitação das diferenças culturais presentes no mundo.
OS DIREITOS HUMANOS SÃO REALMENTE UNIVERSAIS?
Leonel Ribeiro dos Santos, em “A tensão entre eurocentrismo e cosmopolitismo no pensamento antropológico e político de Kant”, afirma que, no meio do pensamento kantiano de unidade, igualdade e dignidade comuns para todos os seres humanos, existem alguns escritos que conferem um papel de superioridade histórica à etnia branca e europeia.
Santos afirma que este papel faz com que, em escritos de Kant, fique comprovado um menor apreço às etnias e aos povos não europeus. Desse ponto, então, surgem críticas à ideia da razão kantiana, já que autores e críticos afirmam que existiria um preconceito implícito em seu pensamento.
O escritor e filósofo africano Achille Mbembe, por exemplo, em “Crítica da Razão Negra” fez uma contraposição ao pensamento kantiano, eurocêntrico e de cunho racista. Ele diz que para Kant haveria uma razão acima das outras, que não apresentaria recortes de diversidade ou etnia, sendo predominantemente eurocêntrica.
Ademais, segundo ANTONIO, DAL RI (2017), os direitos humanos que compreendemos nos dias atuais caminham lado a lado com o direito internacional, ambos frutos de uma série de acontecimentos unicamente ocidentais. A partir dessa afirmativa pode-se dizer que o sistema internacional dos direitos humanos é excludente, visto que classifica que muitos países não cumprem estes direitos por não se encaixarem no padrão ocidental de Estado, utilizado para construir a sociedade globalizada internacional.
É daí que surgem diversos discursos sobre países atrasados e fadados à barbárie por não seguirem o padrão universalista, predominantemente eurocêntrico, do direito internacional dos direitos humanos. A partir do momento em que o referencial já está predisposto por um determinado conjunto de ideias, a marginalização daqueles considerados diferentes torna-se ainda mais evidente. É por isso que vemos, muitas vezes, na mídia, críticas a certas formas de governo que fogem do padrão ocidental ou, nas leis, vedações a certos comportamentos culturais de parcelas da população. Diante do exposto, concluímos que o relativismo fornece um sistema mais inclusivo de olhar para os direitos humanos, em razão de compreender as peculiaridades de cada cultura, bem como seu trajeto histórico-social.
[1] A ordem internacional que conhecemos foi constituída em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, com dois grandes protagonistas: EUA e União Soviética. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/a-nova-ordem-internacional-passa-por-uma-grave-crise/
[2] É um critério unificador de todos os direitos fundamentais ao qual todos os direitos humanos e do homem se reportam, em maior ou menor grau (…). Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-dignidade-da-pessoa-humana-e-sua-definicao/
[3] Os tratados são considerados uma das fontes do Direito Internacional positivo e podem ser conceituados como todo acordo formal, firmado entre pessoas jurídicas de Direito Internacional Público, tendo por finalidade a produção de efeitos jurídicos. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-165/o-brasil-e-os-tratados-internacionais/
[4] A Organização das Nações Unidas, popularmente conhecida como ONU (ou no idioma inglês como UN), é uma organização internacional cuja principal missão é a paz. Disponível em: https://www.politize.com.br/onu-organizacao-das-nacoes-unidas/
[5] Kant revela a ideia iluminista da existência de possibilidade de o homem seguir por sua própria razão, sem deixar enganar pelas crenças religiosas, tradições e opiniões alheias. Ilustração aí seria "a saída do homem de sua menoridade", ou seja, um momento em que o ser humano se torna consciente da força e inteligência para fundamentar a sua própria maneira de agir, sem a doutrina ou tutela de outrem. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-100/kant-e-a-concepcao-iluminista-da-razao/
[6] Em 1789, acontecia na França a revolução que marcaria o fim da Idade Moderna e início da Idade Contemporânea. A Revolução Francesa causou a queda de uma monarquia, o enfraquecimento da Igreja e o fim da aristocracia. Disponível em: https://www.politize.com.br/revolucao-francesa/
[7] A Independência dos Estados Unidos foi fortemente influenciada pelas ideias do Iluminismo, principalmente o conceito de que todo povo possui o direito sagrado de lutar pela sua liberdade. O país que hoje se conhece como Estados Unidos da América, na época colonial, era chamado de as Treze Colônias, colonizadas pela Inglaterra. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/historia/independencia-dos-estados-unidos
[8] O diploma legal trata-se de um documento que indica de forma oficial um título, poder, privilégio ou capacidade de um ou mais indivíduos. Disponível em: https://dicionariodireito.com.br/diploma-legal
[9] A Constituição (CF) de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, é a que rege todo o ordenamento jurídico brasileiro hoje. Desde a independência do Brasil em 1822, é a sétima constituição do nosso país – e a sexta desde que somos uma República. Disponível em: https://www.politize.com.br/constituicao-de-1988/
Referências bibliográficas:
ANTONIO, Carolina. DAL RI, Luciene. O relativismo cultural e a universalização dos direitos humanos no direito internacional público. Revista Publicom, Rio de Janiero, v. 3, n. 2, pp. 273-285, 2017. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/publicum
PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2017.
_______________. Internacionalização dos direitos humanos e humanização do direito internacional.
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