Até hoje, em pleno século XXI, as questões que permeiam os conceitos de transexualidade, identidade de gênero, entre outras, são alvos de preconceitos e tabus. Em primeiro lugar, deve-se entender que a identidade de gênero é uma construção sociocultural[1], logo, está puramente relacionada a como o próprio indivíduo se identifica na sociedade, independentemente de fatores biológicos. Nesse sentido, as pessoas trans não se reconhecem com o gênero que lhes foi imposto ao nascer.
Um relatório publicado pela ONG Internacional Trangender Europe demonstrou que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo[2], em razão do território brasileiro ser o mais violento contra as pessoas trans. Ademais, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa de vida desses indivíduos é no máximo de 35 anos, um número extremamente baixo se comparado à média nacional da população em geral, correspondente a 74,9 anos.
Com apenas alguns dados, que compõem a grande gama de números representativos da barbárie contra as pessoas trans, é possível vislumbrar que essa população sofre expressiva violência, exclusão social e marginalização. De acordo com um estudo feito por DONEGÁ (2017), na maioria da vezes, tal discriminação acontece desde cedo, quando, por exemplo, as pessoas trans não conseguem frequentar escolas por serem vítimas de bullying[3] ou são abusadas física e psicologicamente em casa.
Tal contexto de hipervulnerabilização, resulta em grandes impeditivos para o ingresso das pessoas trans no mercado de trabalho, o que contribui para que muitas delas recorram ao mundo da prostituição, do trabalho informal[4] e do tráfico de drogas ou cometimento de pequenos delitos, em razão de sua condição de miserabilidade. Com o violento processo de marginalização, percebe-se que, para a população trans, a realidade de ter sua liberdade restringida no sistema penitenciário brasileiro não é distante.
Na verdade, sob a ótica lógica punitivista[5] do sistema penal brasileiro, as pessoas trans são mais um alvo do cárcere. Lá, têm os seus direitos fundamentais violados, uma vez que o sistema prisional nada mais é do que o próprio reflexo da sociedade. Como se pode imaginar, tal sistema já é – e historicamente foi – um espaço que invisibiliza as pessoas ali presentes.
Por óbvio, o Estado deve atuar de modo a acolher vítimas de crimes, garantindo-lhes proteção e segurança após a violência sofrida. Isso, porém, não significa que o Estado e a sociedade podem ignorar a situação das pessoas presas, imaginando-as como se fossem sub-humanos. Isso porque a Constituição Federal de 1988 (CF), a nossa Lei Maior, apresenta o caminho para as demais regras sociais, e é clara ao assegurar a todos, no Brasil, o respeito à integridade física e moral, não podendo haver tortura ou tratamento desumano ou degradante independentemente da prática de um crime.
Entretanto, há um abismo considerável entre o que a CF estabelece e a real situação dos presos no Brasil. Na realidade, o que se tem é “um Estado displicente com o sistema carcerário, não se atentando à humanização da pena privativa de liberdade, acarretando em (sic) estabelecimentos penais completamente abandonados” [6]. Em outras palavras, a CF ordena que todas as leis sejam elaboradas e aplicadas considerando os direitos dos cidadãos, não importando quem é a pessoa, sendo que sua condição de ser humano deve ser suficiente para assegurar a ela um tratamento digno e respeitável por parte do Estado, seja em um presídio ou em qualquer outro lugar.
A situação dos presídios brasileiros é tão desoladora que órgãos internacionais já apontaram diversas vezes para esse problema. A título de exemplo, em novembro de 2016, o Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (SPT), composto por especialistas da ONU, encaminhou ao Brasil um relatório sobre violações de direitos e tortura praticados em presídios. O relatório surgiu após visita do SPT a 22 locais de detenção no Brasil e, na ocasião, destacou a quantidade de casos de violência nos presídios e o risco de rebeliões.
Se a situação geral das pessoas presas no Brasil já é absurdamente precária, a situação das pessoas trans nos presídios é ainda mais degradante, tendo em vista o preconceito e violência existentes na sociedade brasileira contra essas pessoas desde sempre. Os relatórios de órgãos independentes e relatos de casos de abusos são bastante comuns e, como será exemplificado abaixo, demonstram parte do problema.
Em audiência pública[7], realizada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2015, foi identificado que o critério para destinação de mulheres trans às penitenciárias brasileiras estava sendo unicamente ligado aos órgãos genitais. A divisão das pessoas apenas por um sistema binário – classificando as pessoas como homem ou mulher – foi um sinal de alarme, visto que, uma vez que algumas pessoas possuem identidade de gênero diversa daquela “atribuída à vista do seu órgão genital, acabam por sofrer violações dos seus direitos, por serem oprimidos pela própria instituição estatal”[8].
Outro dado extremamente preocupante foi fornecido pelo relatório de violência homofóbica do Brasil, segundo o qual foi possível identificar que o Distrito Federal, sozinho, teria registrado cerca de “180 violações de discriminação, levando em consideração que de 411 violações relacionadas a população LGBT’s, apenas 239 denúncias foram realizadas, sendo mais da metade delas só de discriminação”[9].
Outro exemplo recente dessa brutalidade ocorreu em 2015, na penitenciária masculina de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza. Na ocasião, perceberam que uma transexual, ao ser levada para a audiência de custódia, apresentava marcas de espancamento, e, quando questionada, falou que havia sido espancada e estuprada por “quatro apenados que cumpriam pena na mesma penitenciária, e que não voltaria para a prisão masculina, e que se isso acontecesse a vítima em questão atentaria contra a própria vida”[10].
O descaso com as pessoas trans no sistema prisional também se dá pela dificuldade de “acesso aos cuidados de saúde específicos da transição de gênero, consistindo na interrupção de tratamentos antirretrovirais e hormonais” [11], trazendo complicações à dignidade e à integridade física dessas pessoas a curto e a longo prazo, mesmo elas estando em tese sob a proteção do Estado, que deveria zelar pelos seus direitos.
Solução Suprema?
Buscando corrigir tamanha violência e desrespeito com as pessoas trans, o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso proferiu decisão no dia 19 de março de 2021[12] autorizando mulheres transexuais e travestis presas a cumprir penas em presídios femininos ou masculinos. Com a decisão, caso optem pelo estabelecimento prisional masculino, as detentas devem ser mantidas em área reservada, com o objetivo de garantir sua segurança.
Em entrevista concedida ao Congresso em Foco recentemente, Bruna Benevides, mulher trans, militar e secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), afirmou que a decisão do Min. Barroso é uma “grande vitória”, e abre “uma importante discussão, que pode alcançar ainda a forma com que as pessoas trans são tratadas desde a delegacia e a audiência, até a entrada no sistema” [13].
Ainda assim, conforme bem salientado por Gustavo Passos, “a discricionariedade no funcionamento institucional das prisões abre margem para toda a sorte de formas de burlar regramentos produzidos por decisões como essa. Precisamos permanecer vigilantes para garantir que essa decisão seja cumprida e que as pessoas travestis e transexuais possam efetivamente gozar desses direitos"[14].
Com base em tudo o que foi analisado, percebe-se que muitas mudanças devem ocorrer nos próximos anos para que as pessoas trans tenham seus direitos efetivamente assegurados dentro e fora dos presídios. A decisão do Min. Barroso no STF foi importante para preencher uma lacuna que causava diversas violações aos direitos das pessoas trans em situação de cárcere, mas, não é suficiente para resolver todos os problemas que envolvem o tema.
O Direito está no mundo para servir à sociedade, mas só se modifica trazendo novas regras de convivência, mais dignas e coerentes a todos, caso haja uma mudança de percepção da realidade e de respeito aos mais diversos grupos sociais. Trata-se, pois, de mudança que leva tempo para ser sentida, mas que deve ser buscada e fiscalizada em todos os momentos.
[1] De acordo com LOURO (2012) não se nasce com um sexo propriamente definido, mas sim, se constrói de acordo com os ditames da sociedade. A sociedade, que ainda se baseia em padrões antiquados, entende que a questão de identidade de gênero e orientação sexual está ligada à genitália, ignorando quaisquer conceitos individuais e socioculturais. Logo, erroneamente, atribui-se que se uma pessoa nasce com a genitália masculina, ela se identificará como homem e estará sexualmente atraído à mulheres.
[2] Estimativa superior a 800 morte durante o período de seis anos.
[3] O bullying é uma forma de violência, física ou verbal, que é cometida de repetitiva por um ou vários indivíduos.
[4] A informalidade ocorre quando o trabalhador é frequentemente exposto a condições insuficientes de trabalho decente, não recebendo proteção dos mecanismos de seguridade social. Mais informações em: https://www.politize.com.br/trabalho-informal.
[5] É justamente no âmbito do sistema penal, em que o poder estatal se expressa de forma mais radical. O Estado, mediante o exercício de seu jus puniendi, isto é, seu direito de punir, destaca-se enquanto expressão do poder soberano de privar o cidadão de sua liberdade. No momento de punir, o Direito Penal brasileiro rompe com os limites racionais da lei, em tais casos, esse jus puniendi se perverte em crime, traindo o Estado Democrático de Direito e as bases que legitimam e estruturam a Justiça pública. Adaptações feitas pelos autores. Mais informações em: https://www.conjur.com.br/2016-fev-02/tribuna-defensoria-fetiche-punitivista-colapso-estado-direito.
[6] OLIVEIRA, Gabriella Dantas de. O reconhecimento da identidade de gênero nas normas aplicáveis ao sistema carcerário do Distrito Federal: violação dos direitos e garantias da população transgênera que cumpre pena privativa de liberdade.
[7] Em resumo, uma audiência pública é um momento no qual uma determinada entidade, buscando estudar certo tema, convida membros da sociedade civil, representantes de movimentos, empresas e representantes de órgãos públicos para participar da análise de um determinado tema, colhendo informações, dicas, recomendações e sugestões por parte dessas pessoas.
[8] OLIVEIRA, Gabriella Dantas de. O reconhecimento da identidade de gênero nas normas aplicáveis ao sistema carcerário do Distrito Federal: violação dos direitos e garantias da população transgênera que cumpre pena privativa de liberdade.
[9] Ibidem. Referenciando a seguinte fonte: BRASIL. Relatório sobre a violência homofóbica no Brasil, 2012, p. 64. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/junho/numero-de-denuncias-de-violencia-homofobica-cresceu-166-em-2012-diz-relatorio. Acesso em: 13 ago. 2017.
[10] ALVES, Gabrielly de Sousa; AQUINO, Dreyssiane Lessa de; LAVOR, Isabelle Lucena; SILVA, Ednaldo Pereira da; SOUZA, Natália de Alencar; SOUZA, Pedro Henrique Brasil de. A transexualidade no sistema carcerário brasileiro.
[11] Vide a entrevista concedida por Bruna Benevides ao Congresso em Foco. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/justica/stf-detentas-trans-e-travestis-podem-escolher-entre-presidio-feminino-ou-masculino/.
[12] Disponível, por exemplo, em: https://www.conjur.com.br/dl/barroso-permite-trans-travestis.pdf.
[13] CALIXTO, Larissa. STF: detentas trans e travestis podem escolher entre presídio feminino ou masculino.
[14] Ibidem.
Referências bibliográficas:
Art. 5º, III e XLIX da Constituição Federal de 1988.
OLIVEIRA, Gabriella Dantas de. O reconhecimento da identidade de gênero nas normas aplicáveis ao sistema carcerário do Distrito Federal: violação dos direitos e garantias da população transgênera que cumpre pena privativa de liberdade. 2017. 63 f. Monografia (Graduação) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2017. Disponível em:https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/235/11848. Último acesso em 04.06.2021.
SANTOS, Bárbara Ferreira. ONU: impunidade por tortura nas prisões é regra no Brasil. Exame. 23.01.2017. Disponível em:<https://exame.com/brasil/onu-impunidade-por-tortura-nas-prisoes-e-regra-no-brasil/>. Último acesso em 04.06.2021.
ALVES, Gabrielly de Sousa; AQUINO, Dreyssiane Lessa de; LAVOR, Isabelle Lucena; SILVA, Ednaldo Pereira da; SOUZA, Natália de Alencar; SOUZA, Pedro Henrique Brasil de. A transexualidade no sistema carcerário brasileiro. 2019, p. 5. VII Encontro de Iniciação à Pesquisa - CONEXÃO UNIFAMETRO 2019: DIVERSIDADES TECNOLÓGICAS E SEUS IMPACTOS SUSTENTÁVEIS. Disponível em:< https://doity.com.br/media/doity/submissoes/5da49f70-906c-403f-9109-446043cda1d7-a-transexualidade-no-sistema-carcerrio-brasileiropdf.pdf>. Último acesso em 04.06.2021.
Barroso permite que trans e travestis escolham onde cumprir pena. Revista Consultor Jurídico, 19 de março de 2021. Disponível em:< https://www.conjur.com.br/2021-mar-19/barroso-permite-trans-travestis-escolham-onde-cumprir-pena>. Último acesso em 04.06.2021.
CALIXTO, Larissa. STF: detentas trans e travestis podem escolher entre presídio feminino ou masculino. Congresso em Foco, 21 de março de 2021. Disponível em:<https://congressoemfoco.uol.com.br/justica/stf-detentas-trans-e-travestis-podem-escolher-entre-presidio-feminino-ou-masculino/>. Último acesso em 04.06.2021.
VIEIRA, Thiago. Identidade de gênero no sistema prisional brasileiro: à luz da dignidade da pessoa humana. Orientador: Karla de Souza Oliveira. 2018. 44 f. Monografia (Graduação) – Curso de Direito, UniEvangélica, Anápolis, 2018.
MONTEIRO. Karine. O transgênero na execução penal: as constantes violações à dignidade da pessoa humana no sistema prisional. Orientadores: Mônica C. F. Areal, Néli L. C. Fetzner e Nelson C. Tavares Junior. 2019. 17 f. Artigo de conclusão de curso (Pós-Graduação Lato Sensu) – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
SANTO, Everton. OLIVEIRA, Teresa. A vida das mulheres transexuais no sistema penitenciário brasileiro: e a dignidade da pessoa humana?. 2018. 14 f. Artigo científico – ANAIS - 21ª SEMOC, Salvador, 2018.
LIMA, Heloisa. NASCIMENTO, Rasul. Transgeneridade e cárcere: diálogos sobre uma criminologia transfeminista. Revista Trangressões: Ciências Criminais em Debate.
SOUZA, Natália. LAVOR. Isabelle. ALVES, Gabrielly. SILVA, Ednaldo. AQUINO, Dryssiane. SOUZA, Padro. A transexualidade no sistema carcerário brasileiro. 2019. 8f. Artigo Científico – Conexão UNIFAMETRO 2019: Diversidades tecnológicas e seus impactos sustentáveis XV Semana Acadêmica. 2019.
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