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Esther Martins de Carvalho Oliveira

Por uma educação decolonial, antifascista e feminista

A educação é um direito fundamental, constitucionalmente garantido e, como tal, é função do Estado o desenvolvimento de políticas públicas, permitindo o exercício regular desse direito a todos os cidadãos. Contudo, não basta que o poder público, em sua atuação social, garanta educação pública de qualidade a todos, é preciso a garantia de uma educação universal antifascista, antirracista, decolonial[1] e feminista, respeitando a diversidade étnica e cultural do cenário brasileiro.

A geopolítica do conhecimento hegemônico, dominada pelos países europeus e pelos Estados Unidos, impõe categorias universais de conhecimento, marginalizando os povos não brancos. Colagem Cláudia Roquette-Pinto. Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/feminismo-decolonial-origem-e-ideias/

Na realidade brasileira, o sistema educacional, marcado pela globalização neoliberal e também por traços da colonialidade, subsiste, evidenciando que a perspectiva neocolonialista[2] ainda integra a educação. Os conteúdos aprendidos, ensinados e debatidos pelos professores, auxiliares de ensino e pelos alunos nos ambientes escolares e de ensino, partem de categorias explicativas e normativas naturalizadas e posicionadas como absolutas. Transmite-se a ideologia de existência de uma universalização hegemônica que abrange todos os contextos, havendo predominância de uma única narrativa: a narrativa do homem branco heterossexual e europeu ou estadunidense. O sistema de ensino da rede pública funciona a partir da perspectiva “a la Cabral”, buscando um ensino eurocêntrico que exclua os discursos dos povos marginalizados, como as etnias indígenas e a população preta.


O sistema de ensino, tal como descrito, contribui, como instrumento decisivo para o epistemicídio[3]. Ou seja, ao centralizar uma perspectiva monocultural, o sistema serve para corroborar com a destruição das formas do saber e conhecimento de diversas culturas e povos marginalizados. É preciso lutar por uma educação que assuma a função de transformação social com a finalidade de expandir as fronteiras, amplificar as redes e proliferar as vozes, evidenciando as contradições trazidas pela visão colonialista, que impõe formas de conhecimento hegemônicas.


A superação da ignorância e do desrespeito às diferentes formas de viver, sobreviver e se desenvolver como ser humano é urgente. A lógica colonial que rotula, de maneira obtusa, toda a cultura e conhecimento produzidos na subalternidade, de primitivo, incivilizado e até desumano, não condiz com a construção de uma educação para todos, em realidade permeada por diversidade. Voltar-se para decolonialidade significa questionar as pretensões do modelo de conhecimento científico eurocêntrico, realçando a vivência e a experiência da população marginalizada.


O neocolonialismo, ao hierarquizar raças, culturas, gêneros, etnias e religiões impede que a sociedade vivencie a alteridade, reconhecendo a identidade e a dignidade do outro. Almejando a plena experiência da alteridade, a educação e as demais instituições sociais devem se afastar da lógica capitalista, que somente valoriza aquilo que é produtivo, voltando-se ao desenvolvimento de mecanismos que possibilitem a inclusão e a escuta ativa de todas as culturas que foram renegadas e invisibilizadas durante séculos.


A relevância da educação universal em meio a um Brasil diverso perpassa pela construção de bases de ensino anti-imperialistas e livres de qualquer forma de preconceito, abandonando-se a pretensão de ser porta- voz de uma narrativa que não é única, mas múltipla. Compete à educação impedir a interdição dos corpos negros, femininos, indígenas, asiáticos e trans nos espaços sociais. A alteração das estruturas de subalternização que mantêm populações emudecidas é fundamental: queremos ouvir e integrar ao ciclo de aprendizagem o discurso das mulheres pretas da periferia, das mulheres trans em situação de rua, dos indígenas em contexto urbano, dos imigrantes haitianos e tantas outras formas de existência oprimidas.

Nessa toada, a produção dos conhecimentos acadêmicos, principalmente jurídicos, deve articular as diversas formas de saberes e os diversos valores e práticas culturais, em meio ao contexto de consolidação da autodeterminação política, teórica e epistemológica[4] de todos os grupos sociais. Todas as formas de conhecimento necessitam ser reconhecidas como legítimas, respeitando-se o espaço de fala e expressão de cada indivíduo perante suas experiências singulares.


A perspectiva da interseccionalidade deve permear o ambiente educacional, sem qualquer prejuízo à sua potencialidade emancipatória. O ambiente da educação, sobretudo da graduação, cerceado por formalidades e configurado como um espaço predominantemente masculino, hétero e branco, deve ser suplantado para que, assim, as discussões sejam protagonizadas pelos oprimidos e pela palavra popular. Dessa maneira, a problemática da educação superior consiste no fato de as universidades, sob viés neoliberal, explorarem os diversos temas sem a perspectiva de transformação social, barrando as possibilidades emancipatórias e limitando os espaços de fala da população e dos indivíduos envolvidos na luta política pela liberdade e por direitos fundamentais.


O direito, em meio a este processo, como importante estrutura para coordenação e manutenção da vida social, deve abraçar integralmente o ideal de consolidação de uma educação universal fundamentada sobre a razão decolonial e o desafio ético-político-epistemológico trazido. Tal desafio consiste na consciência geopolítica do conhecimento, que rejeita a possibilidade de qualquer ciência falar em nome da coletividade heterogênea e diversa. Nestes termos, cabe à educação emergir como resistência contra estruturas de poder discriminatórias que negam a diversidade e perpetuam a opressão, silenciando populações inteiras.

Obra da série Geometria Brasileira, de Rosana Paulino. Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/o-feminismo-decolonial/

O discurso libertador e emancipatório é intrínseco ao projeto de educação universal com razão decolonial. O Estado, em busca de realizar plenamente os direitos fundamentais de seus cidadãos, deve desenvolver e coordenar políticas públicas e propostas para o estabelecimento e estruturação de um plano de ensino inclusivo, que não menospreze as diversas formas de conhecimento e valorize cada indivíduo e suas experiências de vida particulares em meio à jornada de construção do aprendizado. Assim, as culturas e etnias multifacetadas devem possuir e ocupar seus espaços de produção de conhecimento e ensinamento, impedindo a desvalorização e a exclusão da diversidade humana.


[1] O pensamento decolonial vincula-se ao processo de superação do colonialismo e das relações de opressão intrínsecas a ele, buscando meios de desafiar as estruturas hegemônicas do poder colonial por meio do rompimento com a produção de conhecimento eurocêntrica e da valorização dos diversos saberes.

[2] A perspectiva neocolonialista está relacionada ao processo de dominação política e econômica sobre os países africanos, asiáticos e latino-americanos, pelas potências capitalistas europeias e pelos Estado Unidos.

[3] O termo epistemicídio é utilizado pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos para se referir à destruição de múltiplas formas de conhecimento, culturais e diversas, mediante perspectiva colonialista de hierarquização dos saberes.

[4] A epistemologia é um ramo da filosofia que se dedica ao estudo do conhecimento humano.



Referências bibliográficas

VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Juridicidade: uma abordagem crítica à monolatria jurídica como obstáculo epistemológico. Revista da Faculdade de Direito da USP. Vol. 109, 2014, p. 281 a 325. Texto completo disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/89235/96068.

MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. Por uma razão decolonial: desafios ético-político-epistemológicos à cosmovisão moderna. Porto Alegre. Dossiê: Diálogos do Sul. V 14, 2014, p. 66 a 80.

COLLINS, Patrícia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Paragrafo. Jan/Jun, 2017, v. 5, no1, p. 6 a 17.


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