O presente artigo apresenta como objeto de análise a insegurança alimentar das mulheres encarceradas no contexto das penitenciárias brasileiras, propondo-se à reflexão acerca da sistemática violação de direitos humanos, internacionalmente reconhecidos. O objetivo principal desta análise é refletir sobre as violências perpetradas pelo Estado, diante da marginalização da população carcerária feminina e da concretização de uma política de extermínio de determinados grupos que são alvos de extrema violência.
O acesso à uma alimentação de valor nutricional adequado, diariamente, é um direito humano fundamental e indisponível, uma vez que diz respeito à garantia da dignidade humana e aos direitos à vida e à saúde. Nestes termos, o direito à alimentação não pode ser relativizado sob nenhuma circunstância, sendo dever positivo do Estado garantir o direito à alimentação básica e à nutrição de todos os brasileiros, os quais gozam do direito de estarem livres da fome.
A Organização das Nações Unidas (ONU) declara que o direito humano à alimentação adequada se vincula ao acesso de todas as pessoas aos alimentos e aos recursos necessários para garantir esse acesso todos os dias, determinando que cabe ao Estado a distribuição equitativa dos gêneros alimentícios entre a população. Na legislação brasileira, além da Constituição Federal prever, em seu artigo sexto, que a alimentação é um direito social de todos, há a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional.
A Segurança Alimentar e Nutricional pressupõe a alimentação adequada, regular e permanente em quantidade e qualidade necessárias para assegurar a saúde dos indivíduos. Este direito, baseado nos princípios de moderação, equilíbrio e variedade, traz em consideração as dimensões culturais, sociais, econômicas e ecológicas que cada pessoa está inserida. Sob perspectiva geral, a segurança alimentar busca garantir que a universalidade dos brasileiros tenha o que comer todos os dias, sendo suas refeições de valor nutricional apropriado.
Todavia, o sistema penitenciário brasileiro é, notoriamente, marcado por grande violação aos direitos humanos fundamentais e pelas transgressões às previsões legais que procuram garantir e preservar a humanidade no ambiente prisional, evidenciando-se, desta forma, o estado de inconstitucionalidade da realidade carcerária. São nestes termos que observamos o desrespeito sistemático e reiterado à dimensão da alimentação adequada nos presídios femininos.
As condições precárias e insalubres dos presídios denotam a total despreocupação do Estado com a população carcerária, a qual em meio à onda punitivista [1], que toma conta de nosso país, é vista como menos humana e como alvo legítimo de violências. Esse cenário carcerário integra a fome e a má nutrição das mulheres encarceradas, pois, perante verdadeiro regime de escassez, há falta de alimentos, instabilidade do fornecimento das refeições, indisponibilidade de variedade desses alimentos e desrespeito às questões específicas de cada mulher, como os problemas de saúde que demandam determinada alimentação, e a religião das mulheres, que muitas vezes vedam certos tipos de alimentos. Além disso, constata-se também a falta de acesso adequado à água, fonte primária para os serviços da cozinha.
Essa precariedade se intensifica perante a situação das mulheres grávidas e puérperas [2], tendo em vista as necessidades específicas de cuidados médicos e emocionais que a gestação e o período pós-parto requerem. A violação do direito à alimentação saudável, nestas circunstâncias, gera também a penalização e o sofrimento das crianças, filhas de mulheres encarceradas, uma vez que o seu desenvolvimento pleno e saudável se vincula à boa alimentação materna, sobretudo, quando considerada a questão da amamentação.
Neste contexto, configura-se quadro de crise de saúde pública, uma vez que a alimentação inadequada e a ausência da própria alimentação geram a má nutrição e outros graves problemas de saúde vinculados a lesões físicas e neurológicas irreversíveis. A escassez de alimentos conjugada a outros fatores de risco intrínsecos ao ambiente prisional no Brasil, como a superlotação, a insalubridade e a precariedade de acesso à utensílios básicos para a higiene pessoal – principalmente absorventes – resulta na deterioração da saúde e da qualidade de vidas dessas mulheres, representando a real violência, cometida pelo próprio governo, a que estão submetidas.
A restrição ao direito alimentar das mulheres no cárcere simboliza a dupla punição e o agravamento da pena imposta pela justiça, pois além da privação de liberdade outros direitos fundamentais também são tolhidos, ferindo sua dignidade como pessoas humanas. Essa dupla punição deriva do pensamento punitivista que busca castigar as mulheres criminosas para além do necessário e como meio de infligir dor e sofrimento, retirando-lhes sua dimensão humana. As negligências estatais em relação à população carcerária consistem em flagrante desacato aos valores e fundamentos de nossa legislação nacional e internacional, cujo cerne é a concessão de direitos fundamentais a todas as pessoas, sem qualquer forma de discriminação.
[1] punitivismo: utilização do poder punitivo do Estado para causar sofrimento acentuado aos infratores da legislação, através da imposição de penas mais rígidas e severas, mediante restrição de demais direitos, além da privação da liberdade. O movimento punitivista é impulsionado pelo sentimento de insegurança social perante os altos índices de criminalidade.
[2] puerpério: fase do pós-parto em que as mulheres experimentam modificações físicas e psíquicas.
Referências bibliográficas:
Organização das Nações Unidas (ONU). Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: ONU; 1948.
Oliveira LMB. Práticas alimentares e condições de alimentação de mulheres presidiárias em regime fechado. 2017. 36f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Nutrição) – Curso de Nutrição, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2017. 13. Sousa LMP. O Direito Humano à Alimentação Adequada de mulheres do Sistema Prisional da Paraíba. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva). UFRN. Natal, Rio Grande do Norte, 2020.
SOUZA, Luciana; MATOS, Iara; PAIVA, Taysa; GOMES, Sávio; FREITAS, Cláudia Helena. Regime da escassez: a alimentação no sistema penitenciário feminino. Revista de Ciência e saúde coletiva, Rio de Janeiro, 2020.
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