É inegável que a pandemia tem trazido desafios diversos para todas as pessoas. Nos últimos meses, todos pudemos acompanhar as histórias de milhares de brasileiros – e brasileiras – que estão tendo um trabalho sobre humano para manter suas famílias e para manter suas vidas. No dia 5 de maio de 2021, a doença já tirou a vida de mais de 414.399 brasileiros, tendo contaminado mais de 14.930.183 desde o registro do primeiro caso em terras brasileiras, ainda em março do ano passado.
Acompanhando esses números desoladores – e que fogem da capacidade média humana de compreender grandes tragédias – encontramos (i) o desemprego crescendo na casa dos 33% em 5 meses de pandemia, (ii) a queda de 4,1% no Produto Interno Bruto, isto é, a soma de todos os bens e serviços produzidos pela economia durante o ano (pior registro em 24 anos), (iii) o número de mortes superior ao de nascimentos em várias regiões do Brasil, (iv) uma crise política nunca vista na história do Ministério da Saúde, causando, inclusive, no início de uma investigação parlamentar para verificar irregularidades e (v) uma taxa de vacinação lenta e comprometida pela ausência de diálogo claro e coerente entre o Governo Federal e os demais líderes políticos.
É claro que os números servem muito mais como indicativos para os formuladores de políticas públicas, do que como forma de sensibilizar as pessoas, ainda mais após tantos meses de crise estrutural, na sociedade e no mundo. De todo modo, fato é: que as coisas não estão nada fáceis para o povo brasileiro. Há, porém, uma outra realidade – igualmente triste e desoladora – que foi por poucas vezes tratada desde março de 2020: a situação dos refugiados vivendo no Brasil durante a pandemia.
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que, segundo as leis do Brasil, refugiada é a pessoa que, (i) devido ao medo de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de origem; (ii) não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes morou, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias anteriores; ou (iii) devido a grave e generalizada violação aos direitos humanos, é obrigada a deixar seu país de nacionalidade para buscar segurança em outro lugar. São pessoas que, assim como todos os brasileiros, possuem diversos direitos protegidos por lei e pela Constituição e, sobretudo, merecem respeito e cuidado por parte do Estado e do povo brasileiro.
É indiscutível que a humanidade vem passando, nas últimas décadas, pela pior crise de refugiados de sua história. Segundo os estudos mais recentes da Organização das Nações Unidas(ONU), o número de pessoas que se encontram na condição de refugiados passa o de 80 milhões ao redor do globo. Ainda segundo a ONU, 67% dos refugiados são de apenas cinco países: Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar. Guerras Civis e ditaduras são quase sempre os principais motivos para que pessoas deixem seus países rumo ao desconhecido, buscando uma nova vida em outro lugar. A esperança, infelizmente, tem sido muitas vezes interrompida por uma vida em áreas de vulnerabilidade, campos de refugiados ou regiões mais humildes dos grandes centros urbanos.
Apenas para exemplificar, a Síria vive uma guerra sem fim que, em 2021, ultrapassou 10 anos de duração. No caso da Venezuela, trata-se de um país mergulhado num caos político que parece não ter fim, no qual o governo, em seu território, tem atuado contra a imprensa e a atuação de trabalhadores humanitários (como dos Médicos Sem Fronteiras) . Como se não bastasse, o povo venezuelano enfrenta uma crise alimentar gravíssima, em que a quantidade de venezuelanos desnutridos não para de crescer. A questão da fome é outro problema gravíssimo dentro da América Latina, sendo que órgãos especializados da ONU estão apontando para a necessidade de medidas conjuntas, dos países da região, para combater o retrocesso nos índices de saúde alimentar no continente em tempos de pandemia. Independentemente da origem, é evidente que a vida de um refugiado é marcada por dramas que poucos podem compreender.
No Brasil, de acordo com o Conare (Conselho Nacional dos Refugiados), existem cerca de 45 mil refugiados, sendo que cerca de 38 mil são da Venezuela. Considerando que muitos refugiados buscam sustento individual e familiar ao trabalhar em pequenos comércios, é fácil de imaginar como as idas e vindas das decisões, pela reabertura de estabelecimentos comerciais, acabaram por reduzir parte relevante de seus – já baixos – recursos financeiros. Segundo grupos populares e religiosos que atuam na linha de frente da proteção e acolhida de refugiados no Brasil, a situação é dramática, conforme relatou a assistente social Carla Aguillar, do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI) em entrevista a ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato. Na ocasião, Carla afirmou que em uma casa onde cabe dois ou três, estão morando cinco, seis, oito pessoas. E se um se contamina, contamina todo mundo. Dessa forma, os casos do novo coronavírus entre refugiados certamente é considerável, embora não haja, até o presente momento, nenhum estudo publicado sobre o tema.
Ainda conforme explicou Carla, em sua entrevista, a dificuldade dos refugiados em obter o auxílio concedido pelo governo é significativa. Embora os refugiados também tenham direito ao auxílio, questões como o próprio idioma e a dificuldade para regularização burocrática de documentos dessas pessoas no Brasil acabaram pesando em seu desfavor. Essa lamentável situação também tem sido expressa pelos milhares de refugiados nigerianos, senegaleses, congoleses, angolanos e camaroneses que residem na capital de São Paulo. Muitos estão perdendo suas moradias e se vendo obrigados a morar nas ruas da capital.
Outra relevante instituição de proteção e acolhida dos refugiados, a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo divulgou o número de atendimentos a venezuelanos com coronavírus em sua unidade, os quais representam cerca de 52% dos atendimentos realizados entre janeiro e junho de 2020. Logo após, estão refugiados do Congo com 7% dos atendimentos, Síria com 6% e Colômbia com 6%. Crianças e menores de 18 anos compõem 31% dos atendimentos de venezuelanos. Com base nos pontos levantados, percebe-se que há muitos problemas e poucas atitudes concretas para proteção dos direitos dos refugiados em meio à pandemia. Por mais que a legislação no Brasil – de acordo com os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos – seja positiva aos refugiados, não há atitudes efetivas, por parte dos governos na elaboração de políticas públicas, para efetivação desses direitos, tratando as leis como se estas não passassem de meras recomendações. A grande mídia pouco fala do assunto, e – não à toa – as informações coletadas para a elaboração do presente artigo são, em sua imensa maioria, decorrentes de pesquisas e outros textos elaborados por colegas que atuam diretamente com a proteção dos direitos humanos dos refugiados.
De forma semelhante, enquanto há verdadeiro silêncio por parte das autoridades competentes sobre o tema, guardando as leis e os direitos dos refugiados na gaveta, tem sido grupos civis e religiosos os verdadeiros representantes do povo brasileiro na acolhida das pessoas em situação de refúgio, atuando em uma verdadeira rede de proteção e de solidariedade, conceito esse que é dos mais primitivos e essenciais na história humana, mas que não pode andar sozinho: necessita de atuação do Estado, que tem o poder-dever de direcionar os recursos financeiros e de pessoal qualificado para cuidar do grave problema. Enquanto isso não ocorre, é fundamental que participemos ativamente dessa luta, seja mediante a doação de mantimentos, seja pela divulgação de campanhas de solidariedade, seja pela cobrança das autoridades. O que estiver no alcance de cada um, buscando assegurar a proteção da dignidade da pessoa humana, que deve ser garantida aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País.
Afinal, quem tem fome, tem pressa, e não pode esperar. A fome é perversa e não dá “pra” negar. Só a corrente da dignidade pode mudar essa realidade e dar um fim nessa situação. Pergunte “pro” teu coração que ele vai te responder como faz bem fazer o bem e ver o bem prevalecer.
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