É fato que as tensões entre Ucrânia e Rússia são motivo de notícias diariamente. Hoje, em nosso mundo altamente globalizado e tecnológico, é possível acompanhar a guerra ao vivo e em direto, ficando até mesmo difícil assimilar todo o desenrolar, que é noticiado a cada segundo. Um fato relevante que ocorreu recentemente e será o foco do presente artigo é a solicitação de abertura de investigação acerca da situação na Ucrânia, feita pelo procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim A.A. Khan.
De acordo com as notas publicadas pelo TPI, a investigação está sendo instaurada com base em
análises preliminares de 2014, coordenadas pela então procuradora Fatou Bensouda, a respeito dos conflitos ocorridos na região da Crimeia. Em sua declaração, a procuradora afirmou que sua equipe concluiu que há material considerável acerca do cometimento de crimes de guerra e crimes contra a humanidade na região da Ucrânia, sendo estes evidência suficiente para possibilitar a abertura de investigações.
Mas, o que isso significa? O que pode acontecer?
Em primeiro lugar, para que efetivamente as investigações sejam instauradas, deve haver uma autorização da Seção de Instrução do TPI. Até o momento (01/04/2022), a solicitação ainda está sob análise, todavia, o processo poderá se acelerar, em face do pedido de 39 Estados-parte do TPI requerendo a abertura de investigações.
O que é jurisdição?
Jurisdição, para o universo do Direito, significa o poder de dizer o Direito. Em outras palavras, a jurisdição resulta da soberania dos Estados, que lhes garante o poder de regular todas as atividades governamentais, como as legislativas, judiciárias ou executivas. É por isso que quando um crime é cometido na cidade de Palmas/TO, o Brasil terá jurisdição, isto é, o poder, para, através do Poder Judiciário, julgar o criminoso e punir a conduta ilegal que ocorreu em seu território, por exemplo.
No caso de cortes internacionais, em razão delas não estarem situadas em um território específico de um Estado, a atribuição de sua jurisdição é feita por um processo um tanto quanto diferente. É precisamente neste ponto que figura o Estatuto de Roma.
O Estatuto de Roma
Desde 1872, tem-se registros das intenções da comunidade internacional em criar um tribunal criminal internacional, porém, tensões da Guerra Fria e demais impasses históricos não permitiram a criação de tal tribunal até julho de 2002, momento em que o Estatuto de Roma entrou em vigor. No Estatuto (art. 5º), estabeleceu-se que a jurisdição da TPI estaria limitada a julgar os crimes mais severos contra a comunidade internacional: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão.
O TPI teria jurisdição para julgar o caso em potencial?
Até a presente data (01/04/2022), a Ucrânia e Rússia não são Estados-parte do Estatuto de Roma, isto é, nenhum dos dois Estados acordou com a jurisdição do TPI, válida somente no território dos Estados-parte. Todavia, há uma previsão, no Artigo 12(3) do Estatuto, que permite ao TPI exercer jurisdição sob um Estado-não parte, desde que este último aceite sua jurisdição por meio de declaração. No presente caso, a Ucrânia fez tal declaração, permitindo, consequentemente, o julgamento do caso pelo Tribunal.
Ademais, o TPI também teria jurisdição para julgar os crimes que estão sendo tratados no caso, porque eles se enquadram nas hipóteses de crimes puníveis pelo Estatuto de Roma. Na situação que trata o artigo, como já foi explicado, as investigações dos Procuradores do TPI identificaram que foram cometidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade na região da Ucrânia.
Um breve panorama dos crimes que estão em jogo neste caso
CRIMES DE GUERRA
Diferentemente dos demais crimes previstos no Estatuto do TPI, os crimes de guerra somente começaram a ser contemplados após a I Guerra Mundial e os julgamentos em Nuremberg. Ao longo dos anos, a sociedade internacional buscou codificar tais crimes, baseando-se nas práticas já conhecidas. O Estatuto de Roma se insere nesse meio, trazendo uma vasta codificação, não se restringindo apenas às normas anteriores, mas acrescido de inovações. Alguns aperfeiçoamentos no que diz respeito aos crimes de guerra, instituídos pelo Estatuto, são a punição pelo recrutamento de crianças-soldado ou por ataques contra peacekeepers.
De acordo com o art. 8º do Estatuto de Roma, o TPI somente terá jurisdição sobre crimes cometidos no contexto de um conflito armado que tiverem sido perpetuados como parte de um plano em grande escala. Nesse sentido, crimes ordinários, como roubo, estupro, fraude ou homicídio, não podem ser considerados crimes de guerra somente pelo fato de terem ocorrido no contexto de um conflito armado, na verdade, é necessário um nexo causal entre esses crimes e a guerra.
Ademais, para que os crimes de guerra se configurem, o perpetuador deve estar ciente das circunstâncias fáticas que levaram ao conflito armado. Por fim, o Estatuto define uma série de pessoas que são consideradas ‘pessoas protegidas durante um conflito armado’. Segundo a norma, as vítimas dos crimes de guerra são pessoas que não desempenharam papéis ativos nas hostilidades, por exemplo, civis, funcionários médicos ou religiosos, incluindo os membros das forças armadas que depuseram suas armas ou foram colocados para fora de combate, em razão de doenças, ferimentos, detenção, ou qualquer outra causa.
CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
Crimes contra a humanidade são concebidos como o foco da justiça penal internacional, em sua maioria, se relacionam ao crime de genocídio e aos crimes perpetuados contra civis. De acordo com o art. 7º do Estatuto de Roma, os crimes contra a humanidade apresentam cinco elementos: (i) um ataque dirigido a uma população de civis, (ii) um Estado ou política organizacional, (iii) um ataque de natureza ampla e sistemática, (iv) um nexo causal entre o ato individual e o ataque (v) conhecimento do ataque.
Uma grande inovação que o julgamento em Nuremberg trouxe para os crimes contra a humanidade foi a noção de que tais crimes não são cometidos necessariamente contra civis não-nacionais, em um contexto de ataque armado, mas, também, podem ser perpetuados contra uma população civil de um Estado opressor. Ainda, pressupõe-se que os atos de ataque devem ser produzidos de forma contínua e sistemática, não podendo resumir-se a apenas atos unitários.
Referências bibliográficas
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