Os brasileiros sabem que a Lei Maria da Penha existe, talvez seja uma das leis mais “populares” no nosso país, porque quase todo mundo já ouviu falar nela. Mas, infelizmente, ouvimos falar muita coisa errada e acabamos acreditando em alguns mitos sobre essa lei.
Um desses erros, talvez o maior deles, é dizer que a Lei Maria da Penha também protege homens. A lei 11.340/06, chamada de Lei Maria da Penha, protege somente mulheres. Sem exceções. Porém, precisamos nos perguntar: quem a lei considera como mulher?
A maioria das pessoas costuma utilizar os órgãos genitais para dizer quem é homem e quem é mulher. Ou seja, quem tem pênis é homem e quem tem vagina é mulher. Mas não é tão simples assim, isso porque a própria biologia faz com que as vezes haja uma espécie de “mistura” entre esses dois – homem e mulher.
Isso acontece porque o sexo não é composto só pela genitália, mas sim por todas as características relacionadas aos aparelhos reprodutores, com os quais uma pessoa nasce, ao funcionamento desse aparelho reprodutor e aos caracteres sexuais secundários decorrentes da produção de hormônios (como seios, pênis, pelos faciais e/ou pubianos, modificação da voz). E, às vezes, a pessoa nasce com características tanto do sexo feminino quanto do masculino, sendo chamada de intersexo.
Assim, percebe-se que ter por base a biologia para definir quem é homem ou mulher não é uma boa ideia, já que a própria biologia não é tão binária assim – ou seja, não divide as pessoas em apenas duas categorias: homem e mulher.
Mas, então, o que devemos considerar para definir quem é mulher para saber se a Lei Maria da Penha a protege ou não? O gênero.
Gênero, de forma bem rasa, é a ideia imaginária que temos de que existem coisas que são de mulher e coisas que são de homem, a é a construção social do papel feminino e do papel masculino. Um exemplo bem fácil de vermos o gênero, como ele está enraizado na gente, é quando olhamos os quartos ou as caixas de brinquedos de bebês: meninas tem o quarto rosa, bonecas, fogõezinhos, panelas e vassouras, enquanto que os meninos têm o quarto azul, aviões, carrinhos, dinossauros e animais selvagens. Porque à mulher cabe cuidar da casa e dos filhos e ao homem, desbravar os perigos do mundo.
E o motivo de o gênero ser o melhor parâmetro para definir quem é mulher, para a Lei Maria da Penha, é porque é ele que gera a violência doméstica. Veja, a relação entre os gêneros feminino e masculino não é igualitária: a sociedade considera o masculino mais importante, mais poderoso e, assim, dá mais poderes aos homens. Consequentemente, o homem pode mandar na mulher, por essa lógica.
Vê como é a desigualdade de gêneros que gera a violência doméstica? É por termos uma sociedade assim que violentar a esposa, namorada, ficante, irmã, mãe ou avó ainda é visto como normal.
Agora, o que precisa ser dito é: nem sempre a mulher vai se ver como mulher ou o homem vai se ver como homem. Pode ser que um homem se considere uma mulher, uma mulher se considere como homem ou qualquer um dos dois não se considere nem homem nem mulher. Chamamos isso de identidade de gênero, ou seja, com qual gênero a pessoa se identifica.
Então, se é o gênero que devemos considerar para aplicar ou não a Lei Maria da Penha, todas as pessoas que se identificarem como mulher estão protegidas pela lei. Logo, a Lei Maria da Penha protege mulheres transexuais.
Mas, preciso te alertar que não são todos os juristas que concordam com isso. Na verdade, há bastante divergência sobre esse tema. No entanto, há embasamento jurídico para isso, bem como decisões de juízes e desembargadores que já aplicaram a lei a mulheres trans na prática, inclusive para mulheres trans que não realizaram a cirurgia de transgenitação e/ou a alteração de nome e sexo no registro civil.
Então o que eu, mulher trans, faço se for vítima de violência doméstica e quiser denunciar? Você pode seguir o caminho tradicional de denúncias, que é informar isso à polícia. Mas há chances de que a delegacia ou o atendimento da polícia militar te diga que você não é protegida por essa lei (pode ser que aconteça o contrário também). Ou você pode procurar uma advogada, que também considere que a lei se aplica a mulheres trans, para auxiliá-la, ou, ainda, pedir esse auxílio à Defensoria Pública Estadual, caso não tenha condições de pagar uma advogada.
Você é uma mulher, o próprio judiciário entende que basta você dizer que é mulher para ser uma. Talvez muitas pessoas tentem te fazer acreditar que você vale menos que outros seres humanos, que não é uma mulher de verdade. Mas você é, gostem ou não. E a sua proteção jurídica tem que ser integral.
Referências Bibliográficas
INTERDONATO, Giann Lucca; QUEIROZ, Marisse Costa de. “Trans-identidade”: a transexualidade e o ordenamento jurídico. 1 ed. Curitiba: Appris, 2017, p. 35.
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BIANCHINI, Alice. O vocábulo “mulher” previsto na Lei Maria da Penha abarca os transexuais (ou transgêneros)?. In: DIAS, Maria Berenice (Org.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
CAMPOS, Carmen Hein de. Disposições preliminares – artigos 1º, 2º, 3º e 4º. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2011.
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