A nossa sociedade civil vive uma brutal realidade de violência e opressão. Nos dias atuais, principalmente, frente ao governo vigente, os discursos de ódio contra as minorias sociais foram assumidos abertamente, e até mesmo legitimados por agentes do governo, como o presidente e seus apoiadores. Neste contexto de fortalecimento de correntes e movimentos de intolerância, os alvos da violência são muitos e variam conforme os chamados marcadores sociais. As razões para a proliferação desses discursos de ódio discriminatórios estão centralizadas, em geral, no grupo ao qual pertencem os indivíduos oprimidos. São nestes termos, que abordaremos a violência à qual a comunidade trans está submetida.
Em primeiro plano, cabe analisar o que são os marcadores sociais e o conceito de interseccionalidade. Os marcadores sociais são formas de classificação, construídas socialmente, que identificam os indivíduos em razão do grupo no qual estão inseridos. São exemplos desses marcadores: a raça, o gênero, a sexualidade e a classe. Em relação ao conceito de interseccionalidade, entende-se que este integra a compreensão das diferentes formas de opressão que permeiam nossa sociedade, e de como estamos sujeitos a tamanha violência, nos diversos espaços sociais, em decorrência do grupo que fazemos parte. A ideia de interseccionalidade focaliza os múltiplos sistemas de opressão, evidenciando de que forma as violências discriminatórias são potencializadas na intersecção (encontro) desses grupos.
Diante dos conceitos trazidos acima, devemos refletir sobre as perspectivas da comunidade trans perante a transfobia, que transpassa todas as estruturas de nossa sociedade. Sob discurso, extremamente, machista e patriarcal[1], a sociedade compreende os órgãos sexuais como fator importante de classificação para determinação das funções sociais, de modo que aqueles que tenham nascido com o órgão genital masculino, mantêm, predominantemente, o poder e as posições de liderança. Neste sentido, prevalecendo o entendimento de que as pessoas trans não são vistas como mulheres e homens “verdadeiros”, as formas de vida que não se enquadram no padrão posto, o qual delimita apenas duas possibilidades – nascer homem ou mulher –, são alvos de violência e exclusão, concretizando a transfobia estrutural que invisibiliza e mata pessoas trans diariamente.
Sob esses aspectos, a comunidade trans sofre discriminações diretas, as quais são intencionais devido as características dos indivíduos, como a não contratação de um funcionário pelo motivo de ser pessoa trans, ou ainda, o assassinato dessas pessoas pela mesma motivação. A comunidade em questão também é atingida pelas discriminações indiretas, que perpetuam sua situação de exclusão social – como, por exemplo, o estabelecimento de leis gerais que não prezam pelas particularidades dessa comunidade, gerando impactos desproporcionais.
Segundo Duda Salabert, mulher trans e vereadora da cidade de Belo Horizonte, a exclusão das pessoas transexuais é latente, o nosso mercado de trabalho é totalmente intolerante e não oferece espaço a essas pessoas, condenando mais de 90% da população trans à prostituição. O fato de a prostituição configurar única alternativa para a sobrevivência, levanta, ainda, a questão da vulnerabilidade da saúde das pessoas trans, que resulta numa expectativa média de vida de 35 anos e maior exposição a doenças sexualmente transmissíveis, como o HIV. . Isso é, agravado diante das restrições de acesso aos serviços de saúde, decorrentes da própria discriminação assumida nos atendimentos pelos hospitais públicos , e da ausência do cumprimento de programas de saúde voltados exclusivamente para as especificidades dessa população, como os tratamentos hormonais.
A população trans, mediante às negligências do governo, sofre invisibilidade e exclusão nos espaços familiar, escolar, universitário, de trabalho, da saúde e da política. Destaco que a transfobia, no mercado de trabalho e nos ambientes da educação, traz como consequência o desemprego, a vulnerabilidade financeira e o aumento percentual das pessoas trans em situação de rua. Duda Salabert narra o verdadeiro apagamento da identidade trans nos institutos de ensino e no mercado de trabalho, e coloca que o espaço universitário está longe de ser alcançado, na medida em que essa comunidade ainda luta pela sua inserção social como pessoas humanas. Faltam iniciativas públicas para a integração dessa população na sociedade, garantido seus direitos básicos.
O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, e este cenário de violência se agrava frente às intersecções dos marcadores sociais. O contexto vivenciado por mulheres trans pobres negras e periféricas é ainda mais gritante, de modo que revela maior vulnerabilidade social em todos os espaços, pois são operados sistemas de opressão simultâneos: além da transfobia, sofrem também com o racismo e preconceitos em relação à classe social. É sob essa perspectiva, de interseccionalidade, que refletimos que a emancipação[2] dos grupos minoritários e a igualdade social somente serão possíveis quando o ser humano se libertar de todas as formas de opressão. Não é viável pensar apenas nas discriminações de maneira isolada, uma vez que diversos indivíduos apresentam trajetórias de vida marcadas, em conjunto, pelo racismo, pelo sexismo, pela homofobia, pela transfobia e por outras formas de violência. A luta contra as opressões deve ser una e solidária, buscando alcançar a justiça social para todos.
A transfobia, ao discriminar e agredir os indivíduos pelo que são, configura verdadeira violação aos direitos humanos. Todas as pessoas, independentemente do grupo ao qual fazem parte, possuem direitos fundamentais que devem ser respeitados e garantidos, unicamente, em razão de serem pessoas humanas. Em uma sociedade permeada pela igualdade e pela democracia, distante da realidade do atual desgoverno, idealizamos, sim, pessoas trans ocupando os espaços sociais, principalmente, as posições de liderança. É preciso exigirmos que o Estado implemente políticas públicas, concedendo espaço de fala à comunidade trans, para garantir os direitos e a proteção dessa população, sobretudo, em relação à saúde, à educação, ao trabalho, à vida e à dignidade humana. Os discursos de ódio perpetuados pelas autoridades devem ser considerados intoleráveis e combatidos. Devemos ter em vista que as omissões estatais, no tocante à proteção da comunidade trans, mata diariamente.
A temática da transfobia e de sua compreensão nos diversos ambientes sociais é muito complexa e este curto artigo não poderia esgotar as discussões sobre o tema. Por isso, deixo aqui algumas sugestões para maiores reflexões acerca da transexualidade e de suas repercussões sociais: o filme Girl (disponível no Netflix) e a música Não Recomendado do grupo musical Não Recomendados.
[1] “Para as teóricas feministas, o patriarcado é um sistema sociopolítico que coloca os homens em situação de poder, ou seja, o poder pertence aos homens. As sociedades patriarcais têm gênero masculino e a heterossexualidade como superiores em relação a outros gêneros e orientações sexuais. Por isso, é possível verificar uma base de privilégios para os homens”. Fonte: https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/dicas/o-que-e-patriarcado.
[2] Forma de libertação e obtenção de autonomia. Ação de se tornar livre das diversas formas de opressão social.
Referências Bibliográficas
COLLINS, Patrícia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Paragrafo. Jan/Jun., 2017, v. 5, n. 01.
Podcast: ‘Como Será’ Engajadxs #7: perspectivas da comunidade trans’. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/4wmttlKhfLpcRBtabsOKJA?si=yW8BsbCSQlSmUuHqWTiPRQ (Spotify); https://www.deezer.com/br/episode/97644372 (Deezer); https://audioglobo.globo.com/g1/podcast/feed/707/engajadxs-como-sera (on-line).
ALMEIDA, Cecília Barreto de; VASCONCELLOS, Victor Augusto. Transexuais: transpondo barreiras no mercado de trabalho em São Paulo. Rev. direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 303-333, ago. 2018.
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