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Giulia Grecco Spada

Um Enem "com a cara do governo" e o sistema educacional brasileiro


Começam agora a ter a cara do governo as questões da prova do Enem. Ninguém precisa agora estar preocupado com aquelas questões absurdas do passado

Esta foi a declaração do atual presidente Jair Bolsonaro no dia 15 de novembro de 2021, logo após a demissão em massa de funcionário do Inep, órgão responsável pelo Enem e por outras avaliações e exames nacionais.


Não é de hoje que o governo de Bolsonaro vive tumultos na área da educação: em três anos de mandato, tivemos quatro ministros da educação e cinco presidentes do Inep, causando instabilidade. A prova do Enem, por sua vez, não escapa à crise. Para além da polêmica acerca do veto de diversas questões, teve, este ano, o menor índice de inscritos desde 2005, além da menor taxa de participantes negros (diminuição de 52%) e de escola pública nos últimos anos. O que isso significa? Qual a cara deste governo, quando pensa em educação?

Pensemos, primeiramente, na estrutura do sistema de ensino brasileiro e, posteriormente, no papel que cumpre o Enem dentro dela.


EDUCAÇÃO NO BRASIL

Ao contrário do que prega a ideologia meritocrática, o sucesso escolar não depende apenas do esforço individual, pois o sistema escolar não é igualitário, visto que está estruturado segundo uma cultura dominante, exigindo conhecimentos valorizados por ela que, na maioria das vezes, são estranhos às outras classes. Sempre se valorizou o uso da linguagem culta, o raciocínio lógico, a capacidade de argumentação - habilidades muitas vezes consideradas inatas, mas que são, na realidade, construídas desde a infância junto à família.


Ou seja: ainda que haja o discurso de que a escola é um direito de todos e que cumpre o papel de nivelar o conhecimento dos indivíduos, muitos já entram em vantagem, dotados de habilidades internalizadas que foram cultivadas previamente no ambiente familiar. Obviamente, o aluno irá adquirir conhecimentos e habilidades durante o período escolar, porém, haverá os que já os tem incorporados, utilizando-os com naturalidade e desde o princípio. Estes, de alguma forma, começam a “corrida” alguns passos à frente.


No Brasil, a situação de desigualdade fica evidente também na divisão dos sistemas de educação básica: de um lado, o sistema público, de outro, o privado. Ambos seguem a mesma lógica de valorização das habilidades da cultura dominante, porém se diferenciam pelo currículo e pela origem social dos alunos. Isso faz com que a situação socioeconômica já defina, anteriormente, a qual ambiente o aluno irá pertencer, bem como aos conteúdos e oportunidades aos quais será exposto. Observa-se, portanto, uma dupla desvantagem do aluno advindo das classes populares: além estar em desvantagem quanto aos conhecimentos prévios, frequentará um ambiente em que as possibilidades de futuro são reduzidas, devido aos estigmas enfrentados pelo ensino público e ao abismo entre ele e o ensino superior de qualidade.


Outro fator a se considerar é o tempo que poderá ser dedicado pelo aluno aos seus estudos, se terá que conciliá-los com o trabalho, com atividades domésticas ou cuidando de outros familiares. Neste cenário, os alunos das classes mais baixas são deixados, mais uma vez, para trás na corrida por um diploma.


No ensino superior brasileiro, por sua vez, a situação se inverte: o público é mais valorizado e frequentado pelas classes mais altas, enquanto o privado é mais popular - principalmente após o boom de faculdades privadas de valor acessível da última década e dos programas de financiamento - e inferiorizado. Historicamente, as universidades públicas são destinadas às elites e seus alunos são filtrados pelos vestibulares, exames de alto nível que exigem habilidades muito familiares às classes dominantes. Porém, essa lógica tem sido enfraquecida nos últimos anos.


O ENEM

Neste cenário, o Enem é o maior exame educacional do país e sua nota serve como porta de entrada para as universidades públicas, para qualificação em programas de financiamento de universidades privadas e pode ser utilizado até para ingresso em universidades no exterior. As universidades federais são seu foco principal, mas, ao longo dos últimos anos, tem sido adotado por universidades como a USP (Universidade de São Paulo), uma das mais renomadas do Brasil.

Desta forma, o exame tem sido um mecanismo através do qual as classes populares, mesmo com os entraves na trajetória escolar, podem romper a barreira que o vestibular cria, possibilitando sua entrada em ambientes educacionais altamente valorizados, antes exclusivos da elite.


Sendo assim, o que significa um Enem “com a cara do governo”? Um Enem elitista? Um Enem de baixo alcance?

E o mais importante: a quem interessa esse desmonte do exame e da educação, no geral?

Um Enem com taxa de inscrição tão baixa é um desalento, um diagnóstico de que, talvez, as classes populares já não tenham o ensino superior em seu horizonte de futuro.


Referências bibliográficas

ALMEIDA, Ana Maria F. A noção de capital cultural é útil para se pensar o Brasil. Sociologia da educação: pesquisa e realidade. Petrópolis: Vozes, p. 44-59, 2007.


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