Este artigo tem por finalidade explicar um pouco sobre a união estável, bem como o processo de controle de constitucionalidade que permitiu a união estável para casais homoafetivos.
A pouco mais de um mês atrás, a decisão da Suprema Corte (Supremo Tribunal Federal ou STF) brasileira que reconheceu a união estável para relações homoafetivas completou 10 anos desde o julgamento das ações judiciais que tramitavam na Suprema Corte. O dia 05 de maio de 2011 é marcado pelo julgamento de duas ações do controle concentrado de constitucionalidade que viabilizou o direito de casais homossexuais a constituírem a união estável. Conquanto, antes de adentrarmos ao tema de fato, creio seja necessária uma explicação sobre como é feito o controle de constitucionalidade e como foi possível através dele o reconhecimento da união estável.
Não é tão raro se ouvir por aí que a Constituição Federal (CF) é a norma suprema, e serve como molde para outras normas que vão sendo criadas, em suma, na linguagem popular nenhuma outra norma tem o poder de contrariar o texto constitucional, senão seria essa inconstitucional. Praticamente, a norma constitucional regula todas as demais. O direito é uma ciência que está em constante mudança. Muitas vezes, o avanço da sociedade caminha a passos largos e rápidos, e o legislativo[1] não consegue acompanhar esse avanço.
Numa pesquisa rápida no Google sobre “O que é Controle de Constitucionalidade?”, podemos dizer que a CF criou um mecanismo de correção das normas que forem sendo criadas no ordenamento jurídico. Ou seja, todas as leis estão sujeitas ao controle de constitucionalidade . Aquilo que estiver em desconformidade com o texto constitucional será analisado, revisto e colocado de acordo com a constituição.
Esse controle pode se dar de duas formas, seja pela linha difusa, ou seja, os juízes ao darem uma sentença têm entendimento maleável, interpretativo, do direito posto (texto da lei) ou pelo controle concentrado, ações que têm por finalidade corrigir o erro do legislador. Essas ações são: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
A importância do controle de constitucionalidade no arcabouço jurídico permitiu um entendimento extensivo do texto legal, isto é, entendimento que amplia o sentido e a aplicação da lei, possibilitando, assim, a união estável homoafetiva. Em 2011, o julgamento da ADI-4277 e da ADPF-132 foi o responsável pelo nascimento do direito LGBT, no que tange o direito à união estável.
A união estável não é namoro e não chega a ser um casamento. Como seu próprio nome diz, é uma união estável entre pares que têm por principal objetivo constituir família. A união estável, diferentemente do casamento, não exige formalidade como registro em cartório, mas permite que as partes escolham regime de bens[2], por exemplo. Os artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil[3], tratam da união estável. Numa leitura, apenas do texto legal, teríamos a problemática do artigo 1.723 ao taxar a união estável entre homens e mulheres.
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. (grifo nosso).
Sob essa perspectiva, a lei ao utilizar os termos “homem” e “mulher”, exclui de forma expressa a constituição de união estável entre casais homoafetivos. Os benefícios da união estável e, posteriormente, a transformação em casamento não seria possível. A pensão por morte, por exemplo, é um direito para quem convive em união estável.. Perante a ótica constitucional, é claro que este texto não segue as atuais liberdades individuais, nem a igualdade entre pessoas.
Tamanha injustiça para aqueles que não poderiam constituir a união estável, perdurou por muitos anos, até o julgamento da ADI-4277 e ADPF-132, que permitiram o entendimento da lei, em questão, de acordo com a Constituição. Segundo entendimento do Professor Rodrigo da Cunha Pereira (2020),
O Direito já absorveu que família é da ordem da cultura, e não da natureza. Por isso suas representações sociais hoje podem sofrer variações inimagináveis. Quem imaginaria há 40 anos que a união estável (então denominada de concubinato) entraria no rol das famílias "legítimas". Até dez anos atrás o mundo jurídico não admitia que pessoas do mesmo sexo poderiam constituir uma família? Da mesma forma ganharam legitimidade, com a CR/1988, as famílias monoparentais. São apenas exemplos de que novas estruturas parentais e conjugais estão em curso, por mais que gostemos ou não, queiramos ou não. E é por isso que a mais importante fonte do Direito são os costumes. A vida vai acontecendo, o desejo vai tecendo novas tramas, em busca da felicidade, e o Direito deve ir se moldando a esta realidade[4].
A cultura familiar, por muitos anos, tinha uma carga heteroafetiva, monogâmica e, de alguns anos para cá, vemos evoluções no entendimento não só dos tribunais, mas uma mudança social da moral.O tabu é quebrado com a normatização das coisas. O direito tem papel essencial em quebrar tabus, paradigmas e evoluir.. Logo, cabe a ele permitir o avanço social, garantir a todos vida digna e liberdade.
Nesse sentido, os tabus vão sendo desconstruídos aos poucos. Porque, em pleno século 21, para muitos as relações homoafetivas ainda são um “problema” que atinge principalmente a moral conservadora. No entanto, o direito é de todos, “todos são iguais perante a lei” (artigo 5º, CF), então, ainda que a moral em muitas das vezes molde o direito, cabe ao direito se ditar. “O Direito, dizia ele, só deve cuidar da ação humana depois de exteriorizada; a Moral, ao contrário, diz respeito àquilo que se processa no plano da consciência.”[5].
É a humanidade que instituiu o Estado, é fruto da ação humana a criação das leis e essa jamais poderá levar em conta a consciência de um único indivíduo, pois a moral é a consciência e muitos não a possuem. Em caráter de curiosidade, trago o tópico 6 da ementa[6] do julgamento que proporcionou a união estável.
6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. [6]
[1]“Na divisão dos Poderes estabelecida pela Constituição Brasileira cabe ao Poder Legislativo, entre outras atribuições, a elaboração de leis e a fiscalização dos atos do Poder Executivo. O mais democrático e representativo dos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), o Legislativo é formado por vereadores, deputados e senadores eleitos pelo povo.” (Definição dada pela Assembléia Geral do Estado do Ceará)
[2] regime de bens, pelo doutrinador Carlos Roberto Gonçalves, disciplina as relações econômicas entre os cônjuges durante o casamento. Essas relações devem se submeter a três princípios básicos, sendo estes: a irrevogabilidade, a livre estipulação e a variedade de regimes.
[3] O Código Civil é um importante instrumento de pesquisa e utilização pela sociedade nas suas relações jurídicas, que refletem a própria atuação da pessoa humana em todas suas nuances. Nesse particular, deve-se prestigiar a sua compreensão e aplicação no cotidiano, objetivando a obtenção de maior justiça e equidade na convivência social. (fonte: infoescola)
[4] PEREIRA,2020
[5] REALE, p. 50, 2001
[6] A ementa jurídica antecipa as matérias e as teses jurídicas que dão embasamento a uma decisão ( TJMG, informativo 09, 2013)
[7] Relativo ao afeto heterossexual
Referências bibliográficas:
Poder Legislativo, responsável pela criação e elaboração das leis.
Regime de bens é a administração dos bens entre cônjuges. Via de regra o mais conhecido é o da Comunhão parcial de bens, do casamento ou união estável, tudo que for adquirido daquele momento em diante é patrimônio do casal.
Código Civil – Lei nº 10.406/2002.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. O contrato de geração de filhos e os novos paradigmas da família contemporânea. IBDFAM, 2020. Acesso em: 03/06/2021, às 18:19, disponível em: < https://ibdfam.org.br/artigos/1609/O+contrato+de+gera%C3%A7%C3%A3o+de+filhos+e+os+novos+paradigmas+da+fam%C3%ADlia+contempor%C3%A2nea >.
REALE, Miguel. LIÇÕES PRELIMINARES DE DIREITO. 25ª ed., 22ª triagem, 2001, p. 50. Acesso em; 04/06/2021, disponível em: <https://aprender.ead.unb.br/pluginfile.php/40071/mod_resource/content/1/Livro%20Miguel%20Reale%22>
Ementa do Julgamento da ADI-4277, STF. Acesso em 01/06/2021, disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%204277%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true >
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