Nelson Sullivan foi um videasta[1] que documentou a cena gay nova-iorquina dos anos 80. Em seus inúmeros vídeos, personalidades da club scene[2], como RuPaul, Michael Musto e Lady Bunny fazem aparições enquanto se preparam para performances nas populares boates da época ou em rotineiros e simples momentos de suas vidas pessoais. Após sua repentina morte, em razão de um ataque cardíaco, Sullivan deixou, aproximadamente, 1.200 horas de vídeos.
Inspirado pela filmografia de Andy Warhol[3], Nelson Sullivan, que também era muito ligado à arte, capturou de forma única uma das últimas fases da história de Nova York antes da chegada da era digital. Naquele tempo, ao contrário dos dias de hoje, não era usual que as pessoas saíssem pelas ruas registrando os acontecimentos da vida cotidiana por meio de vídeos. Inclusive, é por este motivo que, em diversos vídeos, muitos amigos de Sullivan questionam-lhe sobre sua necessidade de sempre estar levando a câmera consigo para documentar suas vidas.
Através de seus vídeos, o espectador é transportado para uma Nova York pré-gentrificação urbana e pré-urbanização higienista[4], em que ainda era possível para um trabalhador comum, como Sullivan que trabalhava em uma loja de discos, abarcar os custos de uma casa ou apartamento no bairro de Manhattan, por exemplo. Para muitos, assistir à Nelson Sullivan é sinônimo de poder presenciar a mais crua realidade da comunidade LGBTQIA+ nos anos 80 de Nova York.
Em meio a momentos em que as apresentações de drag queens[5] nas conhecidas boates gay Pyramid ou Limelight são representadas, Sullivan também retrata a realidade que assombra a vida de uma das comunidades mais marginalizadas durante esta época. Em seus vídeos, é possível presenciar o estopim da epidemia global do HIV[6], que atacou, principalmente, a população LGBTQIA+, bem como cenas de ódio e preconceito infundados contra ela. No vídeo RuPaul's Encounter with some Homophobes at the Kevin Larmee Gallery Show[7], é documentado um momento de violência contra a drag queen RuPaul. Enquanto ela atendia à uma exibição de arte com Nelson Sullivan, um grupo de homens que andava pela rua diz para RuPaul, “Você é uma desgraça para a raça humana, você sabia disso?”.
Em sua casa alugada entre a 5ª e 9ª avenida da cidade de Nova York, Sullivan acomodava seus amigos que, pela necessidade e marginalização, precisavam de um lugar para morar. Ademais, o videasta protagonizou um importante papel para a imortalização da cultura LGBTQIA+. Em muitos de seus vídeos ele vira a câmera para si e relata histórias importantes dessa comunidade, como a Rebelião de Stonewall[8]. Também, são retratadas inúmeras paradas de orgulho gay, protestos e eventos que foram de grande relevância para a comunidade, como o Love Ball de Susanne Bartch que juntou grandes marcas da moda, drag queens e as voguing houses do Harlem[9] para angariar fundos em prol da luta contra o HIV.
A biblioteca da Universidade de Nova York reuniu todos os seus vídeos em uma coletânea sob o nome 5ninthavenueproject[10] e disponibilizou o material em um canal no Youtube, que leva o mesmo nome, para todos aqueles que desejem assistir o trabalho do videasta. No dia 03 de julho de 1989, poucas horas antes de seu falecimento, Nelson Sullivan gravaria o seu último vídeo. Nesse mesmo dia, ele havia renunciado ao seu trabalho na loja de discos para poder focar mais em seu projeto de produzir mais vídeos e levá-los à TV a cabo. Nelson se despede de seus espectadores retornando à casa com seu cachorro Blackout depois de um passeio pelo cais de Nova York. Atualmente, a casa onde residia é um museu dedicado à sua memória.
Hoje, mais do que nunca, é importante que a história de Nelson Sullivan seja revisitada, não só pelo seu papel fundamental documentando uma das eras mais marcantes da cultura LGBTQIA+, mas também, porque assistindo seus vídeos percebe-se que tudo mudou, entretanto também continua igual. A história de preconceito e marginalização se repete, ainda ocorrem abomináveis casos de LGBTQIA+fobia. Assim como retratada há 30 anos atrás por Nelson Sullivan, a comunidade LGBTQIA+ ainda permanece em sua constante luta de resistência.
[1] De acordo com o dicionário Houaiss, videasta significa: “1. Autor ou diretor de obras em vídeo (esp. quando têm teor artístico); 2. Indivíduo que participa da realização de vídeos, como diretor e/ou operador de câmera”.
[2] A club scene foi uma fase muito representativa entre os anos 80 e 90 para a comunidade LGBTQIA+. Nesse cenário, drag queens e outros artistas da comunidade ganharam grande relevância com suas performances em boates gays, com suas apresentações de linpsinck (dublagem de músicas), dança e de vestimentas e maquiagens que se tornaram referência na moda.
[3] Andy Warhol foi um pintor e cineasta norte-americano, hoje, ele é reconhecido como o maior símbolo do movimento pop art. Sua coletânea de filmografia apresenta curtas-metragens sobre sua vida pessoal, bem como manifestos artísticos políticos.
[4] O processo de gentrificação urbana ou urbanização higienista refere-se à expulsão de moradores pobres de determinados bairros para transformar a região em zonas nobres. Suas causas estão relacionadas com a especulação imobiliária, e obras governamentais que buscam tornar tais bairros em zonas de turismo. Assim como toda metrópole, Nova York também passou por esse processo e em razão disso, hoje, o bairro de Manhattan, por exemplo, possui um dos custos de vida mais elevados do mundo, principalmente em relação à moradia.
[5] Segunda a Oxford Languages, uma drag queen é um homem que se veste com roupas extravagantes tradicionalmente associadas à mulher e imita voz e trejeitos tipificadamente femininos, apresentando-se como artista em shows, etc.
[6] O primeiro caso de HIV foi detectado na década de 80. Sua maior incidência ocorreu entre milhares de pacientes homossexuais masculinos provenientes das grandes cidades dos Estados Unidos, Nova York, Los Angeles e São Francisco, que, infelizmente, vieram a falecer em razão da letalidade do vírus.
[7] Em tradução livre: O encontro de RuPaul com alguns homofóbicos no show de galeria de Kevin Larnee.
[8] A Rebelião de Stonewall (em inglês, Stonewall Riot) ficou conhecida por ser um marco inicial do movimento LGBT+ contemporâneo. A rebelião ocorreu no dia 28 de junho, data em que, hoje, se comemora o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Para saber mais acesse: https://www.politize.com.br/rebeliao-de-stonewall/.
[9] As voguing houses do Harlem tornarem-se populares grupos de pessoas da comunidade LGBTQIA+ por suas apresentações nas competições de Ball dos Estados Unidos. O Ball consiste em performances de diferentes tipos, em discotecas, muitas vezes feitas por drag queens. Se popularizou no bairro nova-iorquino de Harlem há pelo menos cinco décadas, ganhando destaque na club scene dos anos 80.
[10] Em tradução livre: O projeto da 5ª e 9ª avenida. Disponível em: https://www.youtube.com/user/5ninthavenueproject.
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