Um paralelo com a desinformação e o negacionismo
A cidade é produção humana em seu sentido mais completo: é a depositária de nossas memórias individuais e coletivas, de nossas identidades e de nossas expressões culturais. Nela são revelados os pensamentos, os sonhos, as utopias e os males das sociedades. A passagem que deu início à Idade Média foi marcada pela grande retração urbana e uma clara mudança de mentalidade: ruínas tinham deixado para trás todos os usos originais rumo a uma nova consciência social. Com a reestruturação econômica da Europa, sobretudo devido à influência de cidades marítimas que mantiveram contato com o comércio internacional, houve a valorização da cidade e do patriotismo urbano: “um novo Homem urbano”.
Base material da realidade física e simbólica dos burgos medievais, as muralhas, além de estabelecerem os limites físicos da cidade, sugeriram portas que tecem caminhos às praças centrais. Indo além dos motivos militares, referenciam o legendário definindo o “sagrado espaço”, elemento essencial para a hierarquia urbana e social. A praça pública, constituía um segundo mundo que ia muito além do espectro material: um local próprio para os costumes populares. Com as feiras, o mundo camponês penetrava na cidade e se incorporava às culturas mercantil e eclesiástica, sendo além do local de produção e troca, o de encontro entre a cultura popular e a erudita.
Com o crescimento das cidades, a população de mercadores e artesãos passou a reivindicar liberdade pessoal de ir, vir e morar onde desejassem. O direito urbano suprimiu a servidão territorial acabando com os privilégios que atrapalhavam o comércio. O período também marcou a fundação das primeiras universidades. Isto posto, a verdade é que o termo “Idade das Trevas”, designado para definir toda uma Era, foi apenas uma invenção dos humanistas renascentistas. O “Século das Luzes” depositou uma confiança cega e ilimitada à razão. O medievo, dotado de dinamismo e criatividade, na verdade, demonstra fluidez e não ruptura na sua passagem rumo ao renascimento.
É certo que o repúdio humanista teve suas raízes no negacionismo científico da Igreja, em assuntos que ameaçavam sua integridade e manutenção no poder. Contudo, o conhecimento concentrado aos clérigos passou a incorporar-se à sociedade, atentando para a necessidade da burguesia e pelo fato da nobreza não acreditar que compusesse parte do repertório necessário para a perpetuação no poder. Hoje, o conhecimento se tornou peça-chave para o controle social, não apenas pela omissão da informação como também pela construção da desinformação: disseminada para obstruir a autenticidade dos fatos. Desde os primórdios, a desinformação e o negacionismo não têm posicionamento pré-definido; articulam-se maquiavelicamente visando a manutenção da soberania oligárquica.
Após a Primeira Guerra Mundial, com o desenvolvimento de sistemas de informação, tais como o rádio e a televisão, distribuídos às grandes massas, as distâncias físicas foram gradativamente se perdendo. Por conseguinte, a rapidez com que as informações se propagavam representou uma grande mudança às noções humanas sobre espaço e tempo. Com o barateamento de meios de transporte e comunicação, os processos de aprofundamento da integração internacional e a difusão da internet no final do século XX, as distâncias físicas já não são mais limitantes para a obtenção de informações. O espaço, que era tido como o grande determinador das implicações sociais, políticas e culturais, foi substituído, ao tempo que se consagrou como principal eixo determinante da dinâmica global. O conceito de distância foi relativizado.
As concentrações urbanas da supermodernidade estão associadas à ambiguidade entre a superabundância espacial e ao encolhimento do mundo (fruto da globalização e o encurtamento das distâncias). O produto dessa relação são os não-lugares: espaços de fraca ou inexistente interação, incapazes de promover reunião de pessoas, ideias ou memórias. As convicções pessoais seguem alimentando a deturpação dos fatos.
“O espaço está para o lugar assim como a palavra quando falada”
-Michel de Certeau
Nessa ótica, na “cidade terrena” da atualidade, encontramos um dualismo que vai além da oposição entre o bem e o mal apresentada por Santo Agostinho; nela experienciamos o real e o virtual. Hoje convivemos com uma falsa universalidade do acesso ao conhecimento e do direito à cidade. Acreditamos ser tanto emissores quanto receptores, dotados da liberdade de expressão e opinião, mas somos induzidos a consumir, produzir e dar a informação requerida. A vassalagem transcende o mundo virtual das redes sociais: o anseio pela produtividade inalcançável que culpa o “tempo escasso”. No fim, somos “o meio” dos verdadeiros moderadores responsáveis por manter o mecanismo que estrutura o poder. Análoga à passagem das cidades antigas para os burgos medievais, a transição da sociedade moderna rumo à supermodernidade é marcada pela alteração da mentalidade e descaso ao passado. O acesso à verdade continua sendo exclusivo àqueles que detêm o poder. Talvez a grande diferença entre o medievo Europeu e a supermodernidade seja que, ao passo em que a Idade Média firmou a criação de “lugares” - guiando à “iluminação” - na contemporaneidade, sem pertencimento, a cidade falhou ao resumir sua essência ao técnico e objetivo. Isto posto, quiçá estejamos fadados às trevas.
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