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Esther Martins de Carvalho Oliveira

A criminalização indireta da prostituição

A prostituição é um tema muito relevante no campo social, principalmente no que se refere ao debate acerca dos direitos, liberdades e autonomia das mulheres sob a perspectiva que vincula gênero e sexualidade. Mediante vertentes feministas conflitantes sobre a temática, destacam-se dois discursos distintos: o primeiro compreende a prostituição como forma de mercantilização dos corpos, que se concretiza a partir de exploração marcada por concepções patriarcais, reproduzindo violência estrutural. Por outro lado, a segunda percepção prioriza a autodeterminação sexual das mulheres, pautando que a prostituição, além de configurar direito sexual individual, é também uma escolha voluntária de trabalho. Dito isso, perante o cenário de intenso debate e polemização, é importante pensarmos em uma abordagem jurídica sobre essa questão e sobre a construção que o direito penal promove sobre a representação das trabalhadoras(es) do sexo a partir da visão trazida pelo segundo ponto de vista.

Em primeira análise, é preciso destacar que há casos em que a prostituição constitui crime. O Código Penal, em conjunto com o Estatuto da Criança e do Adolescente, criminaliza o favorecimento e a submissão à prostituição e à exploração sexual de menores de 18 anos e de indivíduos que não possuam o discernimento necessário para a prática em razão de enfermidades ou deficiências mentais. A legislação objetiva, portanto, protege a autodeterminação sexual da vítima vulnerável, tendo em vista seu desenvolvimento físico e psicológico saudável.

Em segunda avaliação, em relação aos maiores de idade, não vulneráveis e capazes de consentir, entende-se que a prostituição é um fato atípico[1], sendo irrelevante para o direito penal. O ordenamento jurídico brasileiro não o criminaliza diretamente, ou seja, o ato de prostituir-se não é crime. Porém, a criminalização se concretiza, indiretamente, através de dois fatores principais: (i) a ausência de distinção explícita entre “prostituição” e “exploração sexual”, termos que são utilizados como sinônimos em alguns artigos do Código Penal; e (ii) a penalização de determinadas condutas ao entorno dessa prática, como o favorecimento à prostituição e o rufianismo[2].

O Código Penal emprega os termos “prostituição” e “exploração sexual” como sinônimos, levando a interpretações completamente equivocadas, sobretudo ao desconsiderar a importância do consentimento para a distinção entre as figuras. Deste modo, a legislação impede a adequada interpretação e aplicação das normas penais. Em vista disso, o código deveria conter em seu texto a noção de prostituição como uma escolha conscientemente voluntária de prestar serviços sexuais remunerados, de maneira habitual, para um número indeterminado de pessoas, visando a obtenção de lucros. E, assim, não configura crime, na medida em que não fere a autodeterminação sexual dos indivíduos.

Sob aspectos diversos, a exploração sexual é caracterizada pela ausência de consentimento da vítima, a qual é constrangida, por meio da utilização de violências, graves ameaças ou fraude, à prestação de serviços sexuais. Precisamente, esse crime consiste na imposição de práticas sexuais à vítima sem o seu consentimento. Assim, diferentemente da prostituição, que é voluntária, a exploração assume a forma de um estupro continuado, violando expressamente a liberdade e a autodeterminação sexual, configurando crime.


Nessa lógica, não cabe a equiparação entre as duas condutas, já que a ausência de consentimento exige tratamento jurídico-penal distinto. A utilização da ideia de “exploração sexual” sem a sua correta definição traz como consequências a criminalização da prostituição e a insuficiência da proteção penal contra a exploração sexual, que constitui forma grave de atividade forçada.

O segundo fator que implica a criminalização indireta da prostituição é a penalização de condutas ao seu entorno. A legislação condena atividades que se estruturam em torno da prática: favorecimento da prostituição[3]; manutenção de casa de prostituição[4] e rufianismo. Dessa forma, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro, qualquer intermediação à prostituição configura crime.

Todavia, a criminalização dessas condutas expressa a realidade penal completamente descabida, pois não há sentido em criminalizar atos que não violam um bem jurídico penal[5] nem apresentam vítimas – não se verifica violação da autodeterminação sexual das(os) trabalhadoras(es) do sexo. A identificação da ausência de dano a um bem jurídico nos revela que, nesse contexto, o direito penal é utilizado como ferramenta de proteção da moralidade e dos bons costumes, disciplinando a vida sexual dos indivíduos, principalmente das mulheres. Dito isso, entende-se ser ilegítima e inconstitucional a penalização do comportamento daqueles que favorecem, organizam e se beneficiam financeiramente da prostituição, uma vez que seu conteúdo é moral e busca reprimir práticas sexuais contrárias à sexualidade considerada “moralmente normal”.

O processo de criminalização indireta da prostituição, empreendido pelo ordenamento jurídico, traz como principal consequência o impedimento da autodeterminação sexual, pois, perante o Estado Democrático de Direito[6], a prostituição deveria ser compreendida como uma opção de trabalho e um direito sexual das mulheres.

Marcha das vadias em Belo Horizonte (MG). Foto de Fora do Eixo Minas. Fonte: https://marchamulheres.wordpress.com/2012/09/21/prostituicao-reconhecimento-e-outras-coisas/


Além disso, a restrição da prostituição aprofunda a marginalização das(os) trabalhadoras(es) do sexo, considerando que a penalização das condutas ao seu entorno constitui obstáculos para a prestação dos seus serviços e para o exercício de direitos fundamentais como o direito à saúde, ao trabalho, à segurança, à previdência, ao lazer e à própria sexualidade. O desamparo estatal e a estigmatização social precarizam as condições de trabalho das prostitutas, dificultando, em última análise, sua sobrevivência, tendo em vista que a exclusão e o isolamento as expõem às mais diversas formas de violência. O não reconhecimento como um trabalho e sua consequente associação à degradação moral levam ao controle dessa atividade pelas forças policiais, as quais usam da violência como principal instrumento de atuação. Nesse sentido, observa-se que prostituição, apesar de não ser explicitamente criminalizada, é objeto de controle institucional através de repressão pelos aparatos do Estado.

Marcha das Vadias em Belo Horizonte. Fonte: https://portalgama.com.br/a-voz-das-putas/


Desta forma, considerando tais consequências e, principalmente, a precariedade das condições de trabalho, identifica-se que o tratamento da prostituição não cabe ao direito penal, dado que sua criminalização indireta não soluciona a complexa situação das(os) trabalhadoras(es) do sexo e não traz respostas para a abordagem da prostituição enquanto um problema social; mas somente agrava a situação de marginalização dessas pessoas. A realidade da atividade envolve dimensão interseccional, integrando fatores raciais, sociais e de gênero. Assim, as complexas faces da prostituição, que englobam, especialmente, a pobreza, exigem ampla leitura interseccional para o desenvolvimento de políticas públicas caracterizadas pela integração de diferentes áreas visando garantir a segurança dessas(es) trabalhadoras(es) e assegurar que a prostituição seja escolhida livremente.


Notas

[1] Fato atípico: conduta que não constitui crime.

[2] Rufianismo: Art. 230 do Código Penal - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

[3] Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual: Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

[4] Casa de prostituição: Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

[5] Bem jurídico penal: bens jurídicos penais são bens vitais para a sociedade, que merecem proteção legal exatamente em razão de sua significação social. No caso dos crimes sexuais, o bem jurídico tutelado é a autodeterminação sexual dos indivíduos.

[6] Estado Democrático de Direito: o Estado Democrático de Direito é um modelo político caracterizado pela proteção das liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos, perante o poder estatal.


Bibliografia consultada

BARBOSA, Marcela Dias. A prostituição e as representações das trabalhadoras do sexo na abordagem jurídica brasileira. Intercursos Revista Científica, Ituiutaba, v. 18, n. 2, p. 221-237, 2019.

JULIANO, Dolores. El trabajo sexual en la mira. Polémicas y esteriotipos. Cadernos Pagu, Campinas, v. 25, p. 79-106, 2005.

NEVES, Heidi Rosa Florêncio. Exploração sexual e direito penal. Tese de Doutorado – Faculdade de Direito da USP, 2019.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes sexuais: bases críticas para reforma do direito penal sexual. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte especial - arts. 155 a 234-B. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. v. 3.


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