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Renato Murad

O assassinato da Crônica Esportiva

Recentemente, reli algumas passagens de crônicas esportivas de Nelson Rodrigues presentes na coletânea intitulada “Pátria das Chuteiras”. A estrutura do gênero varia: pode começar com o placar de um jogo, com algum personagem da partida, com um comentário sobre a torcida… Mas aquilo que elas apresentam em comum é a aptidão de contar uma história a partir de um jogo de futebol. Hoje, pouco restou do gênero, até porque pouco restou do gênero crônica[1], num geral. Escrever para jornal já não é espaço de status absoluto, melhor seria aparecer como trend na sua for you page do TikTok. E, no entanto, o futebol segue sendo elemento primordial de

debate em cada mesa de bar, em boa parte das casas brasileiras e para os “twitteiros” de plantão.

Busto de Nelson Rodrigues com a camisa de seu time, Fluminense, no Rio de Janeiro. FONTE: Wikipedia.

O ex-jogador Tostão, o jornalista almeirense Paulo Vinicius Coelho (PVC), o corinthiano Juca Kfouri, ou ainda a contundente Milly Lacombe. Não se surpreenda se não se recordar desses nomes. Eles são os expoentes da crônica esportiva brasileira que, ainda que tentem incorporar o espaço digital (sendo que muitos deles escrevem em blogs e sites), engatinham na sua penetração que um dia - talvez no tempo de Nelson Rodrigues - já tenha sido das mais populares. É certo lembrar que o “pai” do gênero no Brasil tinha reflexões de um tempo muito diferente e, provavelmente, seria cancelado em menos de duas publicações se lido no ano de 2023. Só que não é a intenção deste artigo se utilizar de certo anacronismo, Nelson deve ser lido mais em sua recepção e capacidade narrativa do que em sua opinião sobre as mulheres no esporte, por exemplo. Lido nessa última chave, ele facilmente seria categorizado como misógino[2].


Há outros motivos pelo fim desse tipo de crônica no Brasil. A própria generalização com o futebol já não é válida. Hoje, outros esportes devem ser inseridos no gênero, algo que parecia inimaginável nos anos 1950. O debate sobre o racismo, as mulheres e a heteronormatividade, antes apenas pincelados[3], agora são uma urgência relativa a um universo - o do futebol - que sempre foi dotado de um extremo rigor de exclusão e violência. E não que os cronistas antes citados como os expoentes do tempo presente não o façam - destaco inclusive a atuação política de Milly, que vem colocando o dedo na ferida de muitos conservadores do meio esportivo a exemplo de sua recente publicação no canal UOL, “Jair Renan, Robinho e o aspecto homoafetivo contido na masculinidade padrão” -, mas existe um elemento perdido com o tempo, que ainda não foi capaz de ser retomado: o aspecto narrativo da crônica. O “jargão” esportivo já não existe e as produções são incapazes de criar uma cultura do esporte. Os personagens ficam mais raros, e o aspecto pitoresco, quase sempre cômico da crônica, se torna esvaziado para dar lugar a uma análise jornalística que está mais no campo técnico da informação científica do que no casamento de características que eternizou a crônica esportiva como gênero da literatura.


Jornalista Milly Lacombe. FONTE: Revista Gama

Talvez a motivação para tal esteja dentro das mudanças relativas ao próprio esporte. Cada vez mais o modelo americano de cultura esportiva é acionado pelo universo do futebol. A magia dessa prática é a sua popularidade ao redor do mundo e a sua capacidade de unir mais nações em torno de uma bola do que qualquer outra no mundo. O críquete, por exemplo, é muito popular em países como a Índia, com bilhões de pessoas assistindo ao vivo; contudo, o críquete foi incapaz de se espalhar pela América Latina e Estados Unidos de forma contundente. Ou seja, o futebol pode não ser o mais assistido, mas certamente é aquele que consegue colocar a maior diversidade de países debaixo de sua cultura. O que ocorre é que, com a americanização do esporte, pouco a pouco ele se distancia do mito e se aproxima da ciência.


A beleza das crônicas de Nelson estavam nas figuras ocultas, nos craques imaginados, nas místicas e superstições. Ali não se chegava a falar em medicina esportiva, legislação do esporte, ou mesmo análise tática rigorosa. Não se falava pois não fazia parte do universo da bola, que mal tinha inventado a regra do cartão vermelho. Hoje é comum o debate em torno de árbitros de vídeo, justiça esportiva e infinitos sistemas de jogo (4-4-2; 4-3-3; 4-1-4-1 etc). Isso é um impulso irrefreável da modalidade e dificilmente seria possível parar tal “progresso”. Ainda assim, parece

que a hipótese de que a crônica esportiva foi assassinada pelo próprio futebol é muito ruim.


Melhor seria se aproximar de Walter Benjamin, que fala da morte do Contador de Histórias em seu famoso texto “O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. Peço licença para fazer uso dessa referência absolutamente saturada nos meus textos mas, novamente, é necessário pensar na incapacidade da produção literária de colocar traços de autoria em sua escrita. Tal qual previa o autor alemão nos anos 1940, a crônica esportiva num geral se entregou pura e simplesmente à informação, recurso caro ao jornalismo, que teima em atrair um gênero literário para debaixo de sua asa. A solução está na adaptabilidade: ter a responsabilidade política de Milly, a precisão tática de PVC e, de alguma forma, evocar o espírito de Nelson, retirando os marcadores de seu tempo e aproveitando a sua capacidade criativa de contar histórias.



P.S. Vem chegando a Copa do Mundo, sediada na Austrália e Nova Zelândia, e o esquadrão de Pia Sundhage entrará em campo na busca do título. Fica o convite informal a leitoras e leitores interessados para submeter crônicas esportivas a respeito de placares, personagens ou qualquer outro tópico capaz de contar uma história sobre futebol.



[1] A crônica é um gênero literário de formato curto que procura registrar tópicos cotidianos, aparentemente banais ou pessoais em formato de prosa.

[2] Misógino: Aquele ou aquilo que pratica a misoginia, que é o ódio e preconceito contra a mulher.

[3] O racismo era o único aspecto dentre o citados tratado de maneira direta no tempo de Nelson Rodrigues, em especial pela publicação do livro de Mário Filho “O negro no Futebol Brasileiro” de 1947.



Referências


LACOMBE, Milly. Jair Renan, Robinho e o aspecto homoafetivo contido na masculinidade padrão. UOL, 3 de julho de 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2023/07/03/robinho-jair-renan-e-a-masculinidade-como-performance.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 4 de julho de 2023, às 19h43.

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