**Sobre a autora: Fernanda é advogada pela PUC-SP, pós-graduanda na FGV-SP em Direito Penal Econômico e membro do grupo de estudos do Observatório Constitucional Latino-Americano. Seus interesses são literatura, direito penal, direito tributário, música clássica e gastronomia. Procura relacionar o Direito com questões sociais e culturais.
Eu, leitora assídua, frequentemente sou indagada sobre minha preferência literária. E, pensando em escrever aqui, optei por trazer um olhar mais envolvente quanto às ficções. Ao invés de passar linhas e linhas tentando convencê-los do quão interessante e importante é a leitura de ficcionais, resolvi apresentá-los a um livro que, ao narrar um romance conflituoso retratado numa Paris gótica, foi capaz de transformar uma das obras arquitetônicas mais famosas do mundo.
A catedral de Notre-Dame, ponto turístico muito visitado da capital francesa, em 2019, sofreu um incêndio de grandes proporções que acabou levando ao desabamento da torre central e do teto. O ocorrido, ao ser transmitido em escala mundial, impactou não somente milhares de espectadores, mas, sobretudo, os parisienses, que, diante das chamas, emocionaram-se e entoaram a Ave Maria, em sinal de respeito ao monumento.
Apesar do apreço que os franceses demonstraram nesse momento de apuros, se o episódio tivesse acontecido há pouco menos de duzentos anos, a reação do público teria sido diametralmente oposta. Falo da época em que o lugar não recebia a devida importância cultural e arquitetônica; quando suas estruturas refletiam o desleixo e o descaso a que estava reduzida.
O monumento começou a ser construído em 1163, no reinado de Carlos Magno, e foi terminado em 1345. A partir de então, em seu entorno, passaram a acontecer feiras livres, negócios comerciais, execuções públicas, festas populares; era ao redor da Catedral que a vida parisiense tomava forma. Mas, ao longo dos séculos e das mudanças sociais no país, a catedral foi saqueada e incendiada, principalmente durante o reinado de Luís XIV e a Revolução Francesa.
A denúncia de seu precário estado de conservação culminou em um dos maiores clássicos da literatura: "O Corcunda de Notre-Dame", romance publicado em 1831. Por meio da ficção, o autor Victor Hugo conseguiu um feito histórico ao povo francês e à cultura ocidental: a reforma de Notre Dame e, posteriormente, o seu devido reconhecimento e valorização.
“Sem dúvida ainda hoje é um edifício sublime, a igreja de Notre Dame de Paris. Porém, por mais bela que se conserve na velhice, é difícil não suspirar, não se indignar diante das degradações e inúmeras mutilações pelas quais simultaneamente o tempo e os homens fizeram o venerado monumento passar, sem respeitar Carlos Magno, quem assentou a primeira pedra, nem Filipe Augusto, quem assentou a última.” [1]
Para mostrar a importância e a beleza original de Notre Dame, o escritor resolveu redigir um romance de resgate histórico, cuja narrativa passa-se em 1482 e tem como protagonista a própria catedral, que representava o ponto de destaque e de referência espiritual da cidade. Inclusive, nas primeiras edições, o livro foi lançado sob o nome “Notre Dame de Paris”. As relações travadas entre Quasímodo, Esmeralda, Frollo e Phoebus, os personagens principais, foram ambientalizadas tanto na parte interna como na área externa. A pretensão de Victor Hugo era conquistar o leitor, ao evocar uma Notre-Dame viva, histórica e participante do cotidiano parisiense, sendo uma “página não somente da história do país, mas também da história da ciência e da arte.”
Embora não tenha sido bem recepcionado pela crítica da época, o livro conquistou aquilo que almejava: a compreensão de Notre-Dame como um monumento representativo do povo francês, da arquitetura ocidental. Assim, em 1844, iniciou-se a restauração que somente foi finalizada em 1864.
Utilizada como um instrumento de transformação, de denúncia social, a ficção destaca a necessidade da preservação do patrimônio público como forma de manutenção da história de um povo. A história imaginária logrou concretizar a valorização de Notre-Dame, a recuperação de sua importância e, séculos depois, o seu reconhecimento como Patrimônio Mundial da UNESCO.
Quando me perguntam, então, o porquê de ler ficção, eu respondo que esse tipo de narrativa nos expõe a cenários recheados de histórias e desejos que, se bem compreendidos, têm o poder de transformar nossos olhares e nosso entorno.
[1] HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame: edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 123.
Referências bibliográficas
HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame: edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
Comments