Em meio ao mundo contemporâneo, movimentado e perigoso, mas, ao mesmo tempo, cheio de nostalgias, o delegado Espinosa nos é apresentado. Personagem principal do autor Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), em sua obra Achados e Perdidos (1998) (Figura 1), o submundo do Rio de Janeiro é exposto, repleto de corrupção e injustiça, entretanto, Espinosa é o diferencial no sistema. Esta resenha irá refletir as desigualdades sociais contidas na narrativa policial de Garcia-Roza, investigando e desconfiando de que modo ela se concebe na modernidade ao transitar pelos diversos pontos de vistas de seus personagens, além de interpretar como seu detetive se encaixa no cotidiano conturbado da “cidade maravilhosa”.
“Como um sujeito decente, honesto, bem-educado, admirador das letras e das artes, entrou para uma instituição indecente, corrupta e estúpida como a polícia?” (GARCIA-ROZA, 1998, p. 70). Sutil como um tiro, ao longo de toda a ficção, o caráter verossímil da corrupção policial é exposto de diferentes formas, porém, sempre com o conteúdo semelhante, podendo estar nas afirmações inocentes de que Espinosa não se parece com um agente da lei ou na busca constante do menino de rua em uma única figura confiável na corporação. E qual o papel dessa polícia corrupta na narrativa? Essa está associada aos crimes, com a ineficiência e com o desejo de fazer o trabalho rápido, independente de estar correto. Notavelmente, recordo a preferência do delegado protagonista de escolher seus parceiros recém-saídos da academia, repletos de sonhos de justiça, aqueles que ainda não foram corrompidos pelo sistema real.
Avançando para a sociedade carioca habituada com a criminalidade, sem perder de vista que em considerável parcela a polícia está envolvida, cabe aos membros desfavorecidos e vulneráveis do “terceiro mundo” buscarem por proteção. A obra se inicia do ponto de vista de um menino de rua, sem nome, como todos os outros, e é nesse mesmo mundo dinâmico onde ocorre o primeiro crime: uma prostituta é friamente assassinada. Portanto, a narrativa gira entre diferentes desigualdades: a corrupção da polícia intrínseca ao mundo do crime, a carteira encontrada e logo descartada pelo menino de rua, a morte de uma prostituta ligada a um policial aposentado, com suas ligações às amigas da vítima e, por fim, Espinosa investigando separadamente de sua delegacia, desencadeando outros crimes.
Meninos de rua, mendigos, travestis, para eles [polícia] não fazem parte da humanidade, assemelham-se tanto aos humanos quanto uma lata de lixo se assemelha a um prato de comida servido num restaurante. Você é universitária, classe média, tem sua profissão; pertence ao tipo de gente que eles têm por função proteger, e não eliminar. (GARCIA-ROZA, 1998, p. 177).
Refletindo como Garcia-Roza concebe a história, também pode ser destacada a maneira que o leitor é provocado e surpreendido pelo autor. Esse leitor é sempre instigado a buscar verdades, embora sabendo que não há uma verdade universal, às vezes acaba ultrapassando o pensamento do detetive, mas, de certa maneira, teme as ações que este toma, compreendendo que a decisão de uma investigação se desdobra em mais adversidades. Ou seja, somos absorvidos na narrativa do mesmo jeito que Espinosa é absorvido por seus pensamentos frenéticos. “Sabia o quanto era imaginativo, como se deixava dominar por sua inesgotável propensão à fantasia, mas sabia perfeitamente que não era louco.” (GARCIA-ROZA, 1999, 97). No contexto carioca, a crítica social atinge todos ao redor do detetive íntegro e ético, apesar de que em alguns momentos ele não deixe de estar incluso nos problemas urbanos que o cercam. Ao lidarem com diferentes tipos de pessoas, de diferentes classes sociais, as abordagens dos policiais mudam consideravelmente, com exceção de Espinosa, que embora saiba “amedrontar” os singulares grupos, não muda sua personalidade ao estabelecer contato com eles. Ademais, o desinteresse midiático com os membros do submundo urbano é assustador, como se a morte de prostitutas ou crianças de rua não significasse nada, como se não fossem pessoas. Aliás, mortes essas atribuídas à força policial, seja em abordagens seja por controlarem os esquemas criminosos.
Por fim, na literatura e na realidade, as adversidades continuam. Diferente dos clássicos policiais analíticos, como os famosos detetives Sherlock Holmes de Sir Arthur Conan Doyle e Hercule Poirot de Agatha Christie, onde o crime é perfeitamente e metodologicamente solucionado, na narrativa do policial contemporâneo, o mundo permanece desajustado. Ao acompanharmos a saga de um funcionário público em seu cotidiano urbano conturbado, podemos notar uma força muito maior do que apenas crimes isolados em ambientes fechados, as atrocidades estão imersas em uma rede hierarquizada, a solução de um caso não significa a punição de um indivíduo, pois esse transcende uma figura isolada, já que o problema está no inderrotável sistema.
Referência bibliográfica
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Achados e Perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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