Durante a atual pandemia de coronavírus, foram colocadas em prática restrições sociais para prevenção do contágio, sendo talvez a maior delas o isolamento social. Foi preciso que as pessoas ressignificassem a maneira com a qual mantinham relações, assim como adaptar as rotinas de estudo e trabalho, o que afetou drasticamente a saúde mental da população.
Antes da pandemia, dados fornecidos pela OMS [1] mostram que o Brasil já ocupava a primeira posição em número de casos de transtorno de ansiedade, com mais de 18 milhões de pessoas sofrendo do problema, o que equivale a 9,3% da população brasileira. Estima-se que o número de casos tenha se agravado desde 2020. O crescimento de casos de transtornos mentais trouxe à tona debates sobre a importância do cuidado com a saúde mental, um tema que, apesar de não ser nada recente, ainda enfrenta muito preconceito e desinformação.
Nesse cenário, a indústria cinematográfica tem sua parcela de responsabilidade, pois acaba por causar um impacto negativo ao fazer más representações de pessoas que vivem com transtornos mentais. Para entendermos mais sobre a relação entre cinema e saúde mental é preciso voltar algumas décadas e compreender como a sociedade enxergava essas pessoas e como os filmes, principalmente os de terror, perpetuaram esse estigma.
O que é Estigma?
Estigma Social é quando a sociedade ou um grupo de pessoas rejeita e desvaloriza um indivíduo que apresenta caracteristicas, sejam físicas ou psicológicas, que fogem à norma, resultando na exclusão e discriminação dessas pessoas.
Já o Estigma Internalizado é tão comum quanto o social, porém nem sempre é levado em consideração. Ele ocorre quando o indivíduo tem consciência do estigma a ele atribuído, concordando e aplicando a si próprio os estereótipos negativos. No caso de indivíduos que sofrem de algum transtorno mental, a internalização do estigma piora os sintomas, levando ao isolamento, sentimentos de baixa autoestima, culpa e auto reprovação.
No artigo “A Visual Culture of Stigma”, publicado em 2008, Jennifer Eisenhauer explica que "A sociedade, que se define como sã, sente a necessidade de localizar e confinar o louco, mesmo que apenas visualmente, a fim de criar um separação entre o são e o insano”,o que era visto nas ilustrações de livros médicos bem antes de chegar ao cinema.
Hollywood e o Horror do Estigma
Nos Estados Unidos, a partir de 1950, começaram a acontecer ondas de Assassinatos em Série (apesar do termo só ter surgido nos anos 70) que aterrorizaram o país. E foi durante esse período que Hollywood, desfrutando de seus anos dourados, viu uma oportunidade para lucrar ainda mais e começou a investir em histórias inspiradas nesses acontecimentos.
Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, foi o primeiro filme a usar um desvio psicológico como motivação para matar e, como esperado, o filme foi um sucesso, seguido por outros sucessos do terror/suspense como O Iluminado (1980), O Silêncio dos Inocentes (1991) e Seven (1995), que propagaram a ideia de que todos assassinos eram psicopatas e vice-versa, apesar da psicopatia ser apenas um dos sintomas do chamado Transtorno de Personalidade Antisocial, e não uma doença em si. Slashers, um subgênero do terror que quase sempre envolve assassinatos em série, como Halloween (1979), A Hora do Pesadelo (1984) e Sexta Feira 13 (1980) ganharam longas franquias, as quais contam como personagens que escapam de hospitais psiquiátricos eram a própria personificação do mal - e a explicação para tanta maldade estava na loucura.
Os filmes Fragmentado (2016) e Coringa (2019) são dois exemplos que prometiam trazer conscientização sobre indivíduos que vivem com transtornos mentais e sobre a sociedade que os cerca, porém acabaram por usar essa complexa relação como justificativa para os atos cometidos pelos mesmos e continuaram a disseminar a ideia de que violência e transtornos mentais não só estão ligados, como são dependentes.
Apesar das narrativas retratadas nesses filmes, um estudo realizado em 2013 mostrou que pessoas que sofrem de distúrbios mentais graves (esquizofrenia, depressão grave, psicoses e etc) estão mais suscetíveis a serem vítimas de atos violentos do que responsáveis pelos mesmos.
A Importância da Representatividade
Quando falamos de transtornos como ansiedade, depressão e nuances do espectro autista, as produções audiovisuais conseguem trazer mais coerência em suas representações. Talvez isso se dê ao fato de que, em alguns desses casos, as obras contam com roteiristas e/ou diretores que vivem com essas doenças e, dessa maneira, conseguem trazer um ponto de vista bem mais próximo da realidade.
Divertidamente (2015), Oitava Série (2018), As Vantagens de Ser Invisível (2012), O Babadook (2014) e séries de tevê como BoJack Horseman (2014 - 2019) e Objetos Cortantes (2018) trazem excelentes narrativas de maneira empática, realista e sensível em diferentes gêneros cinematográficos. Essas obras conseguem abordar a saúde mental criticamente e, ao mesmo tempo, apresentar o indivíduo portador de um transtorno mental como um ser complexo que não é definido pelo seu diagnóstico e que não está fadado a um destino violento.
Como consumidores, é nosso papel ter olhar crítico sobre as representações da saúde mental na indústria do entretenimento e cobrar ativamente por mudanças. E cabe aos grandes produtores, diretores e roteiristas estabelecer um nível de comprometimento e responsabilidade ao abordarem temáticas sensíveis em suas obras.
[1] Sigla da Organização Mundial da Saúde, uma agência especializada em saúde fundada em 7 de abril de 1948 e subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU).
Referências Bibliográficas:
EISENHAUER, Jennifer. A Visual Culture of Stigma: Critically Examining Representations of Mental Illness. Academia Edu, 2008. Disponível em: https://www.academia.edu/28508553/A_Visual_Culture_of_Stigma_Critically_Examining_Representations_of_Mental_Illness. Acesso em: 17 ago. 2021.
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BERGAMASCO, Michel Wilian. Serial Killers ao longo da História do cinema., UFSCar Artigos, 11 jul. 2012. Disponível em: http://www.ufscar.br/~cinemais/artserial.html#:~:text=A%20come%C3%A7ar%20pelo%20nome%2C%20o,v%C3%ADtimas%2C%20por%20isso%20este%20nome.
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BENHAM, Megan. Horror Movies and the Exploitation of Mental Illness. The Boar, 10 ago. 2018. Disponível em: https://theboar.org/2018/04/horror-movies-and-the-exploitation-of-mental-illness/.
Acesso em: 13 ago. 2021.
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