A música brasileira está intimamente ligada à história, na medida em que descreve através de suas letras e melodias as ocorrências de um tempo presente ou passado. Ela vem funcionando, há muito tempo, não só como forma de entretenimento, mas como um importante retrato comportamental, moral e ideológico da nação.
Sendo assim, a música apreende também a memória, dado o registro vivido que tenta eternizar, permanecendo então presente na vida de ouvintes futuros, que poderão emergir em sentimentos ao ouvir relatos cantados de acontecimentos passados nos quais sequer se esteve presente, se inserindo assim no contexto e conteúdo da letra.
A memória de um povo é construída conforme o passar do tempo e a música ocupa uma importante função na sua manutenção, pois registra e armazena os diferentes pensamentos de um grupo em determinada época. A escrita dessas memórias, por meio de versos e melodias, torna possível observar a história com um olhar muito mais próximo e afetivo, além de propiciar uma fácil memorização, diferenciando-se assim de outras manifestações artísticas. Para Henri Atlan (1972), biofísico e filósofo francês:
A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para se interpor quer nos outros, quer nas bibliotecas.(apud PEREIRA, LIMA; 2016)
Frequentemente as músicas brasileiras relacionam suas letras ao país, ajudando na manutenção de uma memória, não só coletiva, como nacional. E por memória nacional entende-se: “O caldo de cultura, por excelência, para a formulação e desenvolvimento da identidade nacional, das ideologias da cultura nacional e, portanto, para o conhecimento histórico desses fenômenos.” (MENEZES, 1992 apud MOTTA, 2003, 184).
É comum encontrar músicas que exaltam presidentes e seus governos, como é o caso de ‘Dr. Getúlio de Chico Buarque (1983), que faz uma clara exaltação ao governo de Getúlio Vargas e Presidente bossa nova de Juca Chaves fazendo alusão ao presidente Juscelino Kubitschek (PONTUAL, 2018).
O governo de Getúlio Vargas teve grande importância para a consolidação da música popular brasileira, com destaque para o samba. A criação do Departamento de Imagem e Propaganda (DIP) no governo Vargas, promoveu a disseminação de músicas que homenageavam e exaltavam o presidente e seu governo. A memória de um samba antes tido como berço da malandragem, conhecida pela inexistência de rotina ou de uma vida regrada, dá espaço para uma outra memória, que privilegia a defesa do trabalho, do desenvolvimento e da ordem, tornando assim a criação artística vítima da censura. (STEIGENBERGER; FERNANDES, 2008)
Uma das músicas lançadas no ano de 1941, durante o governo varguista, pelo cantor e compositor Ataulfo Alves, intitulada É negócio casar exemplifica a incitação de valores morais aos ouvintes:
Vejam só...
A minha vida como está mudada.
Não sou mais aquele
Que entrava em casa alta madrugada.
Faça o que eu fiz,
Porque a vida é do trabalhador.
Tenho um doce lar
E sou feliz com meu amor.
O Estado Novo
Veio para nos orientar.
No Brasil não falta nada,
Mas precisa trabalhar.
Tem café, petróleo e ouro,
Ninguém pode duvidar.
E quem for pai de 4 filhos,
O presidente manda premiar...
é negócio casar. (ALVES, 1941)
Wilson Batista compõe, no ano de 1933, um samba intitulado Lenço no pescoço, em que fazia uma clara exaltação à malandragem com versos que diziam ‘’Eu passo gingando / provoco e desafio / Eu tenho orgulho de ser tão vadio / sei que falam deste meu proceder / eu vejo quem trabalha andar no miserê / eu sou vadio porque tive inclinação’’. Posteriormente, no ano de 1940, vítima da política repressiva do Estado Novo, Batista lança junto a Ataulfo Alves o samba ’Bonde de São Januário’, onde, em um caminho completamente oposto da primeira música, com versos que se redimiam pelo passado boêmio, exaltava o trabalho. (STEIGENBERGER; FERNANDES, 2008).
Tantos outros compositores da época também são exemplos perfeitos de como os interesses do regime governamental vigente na época usaram a música como instrumento para moldar uma sociedade com os ideais de interesse do grupo dominante para a construção de uma memória de cidadãos almejados que não se ligavam ao ócio. Para Burke: ‘’devemos sempre perguntar: “quem quer que esqueça o quê, e porquê” ( MOTTA, 2003, 186 apud BURKE, 1992).
O governo Vargas não foi o único a fazer uso da censura para conseguir se manter no poder, consequentemente, a classe artística não teve sua liberdade de expressão reprimida somente naquele momento. Instituída logo após o golpe de 1964, a censura se torna ainda mais intensa no ano de 1968 com a instauração do Ato Institucional 5, que legitima a perseguição e a violência aos opositores ao regime (HERMANN, 2014). Mas, se no governo getulista alguns artistas se moldaram aos interesses do governo para a criação de uma nova nação, na ditadura militar não foi o que ocorreu.
Ao contrário da tentativa de remodelar o comportamento moral de uma sociedade, a função que a música adquiriu foi de resistir aos sistemas de restrição à liberdade de expressão. Com músicas como: Apesar de você, Acorda amor e Cálice, Chico Buarque faz uso de metáforas para expressar sua crítica e evitar ser vetado pela censura, mesmo tendo se autoexilado posteriormente, Buarque preservou uma memória coletiva contra o regime, assimilando assim a ideia de que o que faz a memória de um grupo pertence muito mais ao sensível do que ao físico.
Podemos inferir que só é possível a produção de uma memória coletiva caso indivíduos se sintam afetivamente participantes daquele grupo. De modo que ‘’se, no presente, alguém não se recorda de uma vivência coletiva do passado é porque não pertencia àquele grupo – ainda que pertencesse fisicamente – já que é o afetivo que indica o pertencimento’’ (D’ALÉSSIO, 1993, página 98).
Além de Chico Buarque, muitos outros artistas expressaram suas ideias e indignações com o regime vigente, foi o caso de Caetano Veloso, Taiguara, Geraldo Vandré, Gonzaguinha, Elis Regina, dentre outros. As suas músicas são utilizadas até os dias atuais para estudar a história através da exposição da memória desses cantores, que apesar de individuais, representam um sentimento coletivo de identificação.
Para mais, figuras como a de José Mendes da Silva (Zé do Caroço), líder comunitário do morro do Pau da Bandeira, tiveram sua memória musicalizada através da cantora e compositora Leci Brandão. Zé do Caroço foi um morador da comunidade carioca, que instalou um sistema de alto-falantes para se dedicar às causas sociais de onde morava. Durante o horário da novela, Zé do Caroço prestava um serviço de assistência pública à comunidade, falando desde o preço da feira até as necessidades básicas locais que vinham enfrentando. Usava o horário da novela justamente para que as pessoas deixassem de prestar atenção à manipulação a que estavam sendo submetidas e enxergassem a realidade.
No entanto, o sistema não agradou a todos, em um prédio próximo morava um militar com a sua esposa e esta criticou profundamente o serviço prestado alegando que aquilo a estava atrapalhando no momento de assistir a sua novela. Para o Morro do Pau da Bandeira, Zé do Caroço foi um importante líder comunitário e esta é a memória que eles possuem dele, como um símbolo de resgate identitário.
Apesar de ter sido composta em 1978, a música só conseguiu ser lançada em 1985, pois foi censurada. Para o governo vigente, não havia motivos para exaltar Zé do Caroço e transformá-lo na memória de um líder comunitário importante, na medida em que o grupo dominante é sempre responsável pela seleção da relevância do que será lembrado ou esquecido.
Por todas essas razões, a interpretação da história torna-se complexa. A memória de determinado povo não é sinônimo de sua história, essa confusão acontece porque ambas estão relacionadas a uma coisa comum: o passado (D’ALÉSSIO, 1993, página 98). Não se pensa em memória sem pensar no passado, da mesma forma em que não se pensa em história sem se remeter a ele . A memória coletiva vive enquanto o povo que compartilha dela existir, extinto esse grupo, o que passará a existir é a história, que em teoria é impessoal.
Quando falamos numa memória dividida, não se deve pensar apenas num conflito entre a memória comunitária pura e espontânea e aquela “oficial” e “ideológica”, de forma que, uma vez desmontada esta última, se passa implicitamente assumir a autenticidade não mediada da primeira. Na verdade, estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra ideológica e culturalmente mediadas. (MOTTA, 2003, 181 apud PORTELLI, 1996).
A música Pindorama, lançada em 1998 pelo grupo Palavra Cantada, evidencia bem o choque da história quando rememorada por culturas diferentes. A música é gravada por duas supostas crianças, uma brasileira e outra portuguesa, que cantam suas diferentes visões sobre o ‘’descobrimento’’ do Brasil. Enquanto a visão portuguesa da música diz que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral, a visão brasileira trata de relembrar o fato dos indígenas já estarem presentes no Brasil quando os portugueses chegaram.
(...)
Vera Cruz, Vera Cruz
Quem achou foi Portugal
Vera Cruz, Vera Cruz,
Atrás do Monte Pascoal.
Bem ali, Cabral viu
Dia 22 de abril,
Não só viu, descobriu,
Toda a terra do Brasil.
Pindorama, Pindorama,
Mas os índios já estavam aqui.
Pindorama, Pindorama,
Já falavam Tupi-Tupi.
Só depois, vêm vocês,
Que falavam Tupi-Português.
Só depois, com vocês,
Nossa vida mudou de uma vez (...) (PALAVRA
CANTADA, 1998)
Posteriormente, no ano de 2016, a cantora de funk MC Carol, lança uma música intitulada Não foi Cabral, onde apresenta uma nova versão da história e rememora não só o “descobrimento do Brasil”, mas também as epidemias e os genocídios dos povos indígenas.
(...) Pedro Álvares Cabral
Chegou 22 de abril.
Depois colonizou
Chamando de Pau-Brasil.
Ninguém trouxe família.
Muito menos filho.
Porque já sabia
Que ia matar vários índios.
Treze Caravelas.
Trouxe muita morte.
Um milhão de índio
Morreu de tuberculose (...) (MC CAROL,
2016)
Ao nos depararmos com músicas como Pindorama e Não foi Cabral, somos colocados diante de uma outra visão da história, deslegitimando um passado construído pela memória, antes tida como verdade absoluta, de que o descobridor do Brasil foi Pedro Álvares Cabral. Determinado grupo tem o poder de escolher o que terá ou não como memória, e sabem quais serão os benefícios de se lembrar apenas o que se deseja (MOTTA, 2003).
Em síntese dos assuntos apresentados, a memória tem, no seu papel essencial, o empoderamento crítico e a construção do ser inserido em diferentes interpretações de realidades. Sucumbida a essa essência, a arte representa, ainda que de modo nunca literal, vivências trazidas da memória individual-coletiva que constituem a história, sendo sempre vítima do sensível pessoal e do proveito hierárquico, podendo ou não se abster da resistência.
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