A Constituição Federal brasileira tem natureza positivista[1] e, quando afirmamos isso, estamos nos referindo ao sistema adotado pelo Brasil com seu regime jurídico. Uma constituição positivista, por sua vez, tem como característica a presença de vários direitos previstos de forma expressa em seu texto.
Dentre os mais diversos direitos positivados na Carta Magna, como direito à vida, liberdade, liberdade religiosa, saúde, segurança, daremos um enfoque maior ao direito à propriedade.Quando tratamos dele, que tem previsão legal no inciso XXII do artigo 5º da Constituição, assegura o direito à propriedade, que, nas palavras de Maria Helena Diniz, é “[...] o direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar, dispor de um bem corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”[2]. Esse conceito nada mais nos mostra que o proprietário é o dono da coisa.
Nesta linha, a Constituição Federal de fato prevê real proteção à propriedade, mas por quê? Com qual finalidade? Quando tratamos do bem de propriedade familiar, que atende às necessidades inerentes à família, esse determinado bem tem proteção especial do Estado. Essa proteção é a sua impenhorabilidade, ou seja, por via de regra, o bem é impenhorável, não recaindo quaisquer obrigações creditícias sobre ele.
A Lei Federal nº 8.009 de 1990 dispõe exclusivamente sobre a impenhorabilidade do bem de família, de bens móveis e imóveis que não podem ser penhorados. Esses bens que não são passíveis de penhora são todos aqueles essenciais para garantir a mínima subsistência, o mínimo existencial para aquela família. Por exemplo, se determinada família está sofrendo penhor judicial e, na residência existam duas geladeiras, uma delas poderia ser penhorada, haja vista existir outra, garantindo-se o mínimo existencial. [3]
No entanto, a mesma lei que regula a impenhorabilidade de determinados bens, sejam móveis ou imóveis, traz situações de bens que podem ser objetos de penhora e algumas exceções à sua regra de impenhorabilidade. A penhora, por sua vez, é uma ferramenta utilizada para tomar a propriedade de um bem pertencente a outrem para quitar uma obrigação existente, por não ter sido cumprida anteriormente.
Essa obrigação pode decorrer de um contrato, como uma dívida que foi contraída e que o devedor que deveria solver o débito não o fez, não consentiu com suas responsabilidades de pagamento, e está sendo compelido ao pagamento por meio da penhora de seus bens.
É importantíssimo mencionar que, com o avanço da sociedade, novos tipos de família vêm nascendo. Quanto ao bem de família, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, presente no enunciado da Súmula 364, pessoas solteiras, viúvas e separadas estão protegidas pelo instituto da impenhorabilidade, vejamos:
Súmula 364-STJ: O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas. [4]
Feita essa ressalva, vamos ao que a Lei 8.009/90 conceitua sobre a impenhorabilidade:
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Isto significa que a dívida civil, comercial, fiscal ou de outra natureza não irá incidir sobre esse bem de família, ressalvadas as hipóteses previstas na lei. Entende-se por imóvel familiar aquele que é o único imóvel da família, que atende às necessidades familiares, em outras palavras, é a moradia. Com isso, uma família que detenha um único imóvel residencial não poderá sofrer a penhora do bem, sob o argumento de ser bem único de família. Resumindo, há proteção estatal para garantir certa dignidade dos ali residentes. Embora essa seja a regra geral, a lei traz determinadas situações em que não poderá ser oponível[5] o argumento da impenhorabilidade.
Dentre as exceções dadas pela Lei, existia, até maio de 2022, uma divergência doutrinária e jurisprudencial[6] nos tribunais superiores com relação ao tema da penhora do único bem de família nos casos de fiança locatícia. Antes de adentrarmos a essa situação e hipótese trazida pela Lei, é necessário conceituar a “fiança”.
A fiança, por sua vez, nada mais é, que um contrato de garantia, em outros termos, caso o real devedor não pague, um terceiro irá garantir que a obrigação seja satisfeita. O Código Civil disciplina esse instituto no artigo 818, com a seguinte redação: “Art. 818. Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.”.
Na mesma linha, nasce a fiança locatícia, que é uma fiança que garantirá que a obrigação de pagar o aluguel, caso não cumprida pelo locatário afiançado [7], será atendida pelo fiador. E é aqui que surge uma importante questão: se o devedor principal da obrigação não arca com ela, o fiador irá fazê-lo, mas qual a garantia do credor de que o fiador irá cumprir com sua obrigação? Pois então, o fiador aliena um bem para, quando não efetuada a quitação, ele seja levado à penhora para cumprimento da obrigação principal. Por conseguinte, o bem alienado pelo fiador será a garantia de que, se este não pagar a dívida do devedor inicial a qual é igualmente responsável, isto é, deve pagá-la também, perdendo esse bem para cumprir a obrigação.
Agora entramos no cerne da questão: a lei que protege ao bem de família traz, como uma das exceções para penhorar o bem de família, o caso da fiança em contrato de locação. O artigo 3º, inciso VII, afirma que:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação
Existe, portanto, previsão legal para penhorar o imóvel, ainda que decorrente de imóvel de família, quando este imóvel estiver alienado em contrato de fiança locatícia. No entanto, a discussão que perdurou por anos no Judiciário foi: a qual modalidade de locação poderia ser objeto de penhora esse imóvel? Apenas locação residencial ou também comercial?
Até este ano, 2022, não existia um entendimento consolidado sobre o assunto, isso porque as finalidades da locação residencial e comercial são bem diferentes e essa diferença era utilizada como argumento para penhorar ou não o bem de família. Todavia, também neste mesmo ano, com intuito de sanar as dúvidas quanto à penhora ou não do bem de família, seja nos casos de fiança locatícia concedida em caráter de contrato comercial ou residencial, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no Tema de Julgamento 1.127, que é penhorável o bem de família quando concedido em contrato de fiança locatícia, seja para locação comercial ou residencial, conforme decisão: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial.”
[1] O termo dentro do âmbito jurídico, significa que as leis que regem o ordenamento são positivistas, isto é, o legislador traz para as leis uma série de direitos expressos na lei. Quando o caso chega ao Juiz, ele aplica esses direitos criados, positivados, ao caso concreto.
[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol 4: Direito das coisas. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 129. Maria Helena Diniz é uma doutrinadora da matéria de Direito Civil.
[3] Disponível em: L8009. Acesso em: 19 ago. 2022.
[4] Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/sumstj/. Acesso em: 19 ago. 2022.
[5] Oponível nesse caso, significa dizer que a pessoa não poderá se utilizar do argumento da impenhorabilidade, uma vez que a lei traz as situações em poderão ser objeto de penhora.
[6] Divergência doutrinária e jurisprudencial: No Direito, autores de livros são chamados doutrinadores. Eles, por sua vez, escrevem livros sobre determinadas matérias do direito das mais diversas áreas. É claro que, o posicionamento de um doutrinador em relação ao outro varia. Sendo assim, a divergência doutrinária nada mais é do que posicionamentos diferentes sobre o mesmo assunto. Nesse mesmo sentido, é a divergência jurisprudencial, só que no âmbito judicial, tribunais distintos ou câmaras de julgamento do mesmo tribunal julgam de forma diferente determinado caso, aplicando o mesmo dispositivo legal em sentidos diferentes.
[7] Afiançado: que foi objeto de fiança. Está protegido pela fiança.
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